Quem leu as notícias dos últimos dias de 2020, poderia facilmente augurar um 2021 como o ano do início do fim da mais grave crise sanitária e económica global em décadas, mas os primeiros dias de Janeiro de 2021 tem sido preenchidos por dúvidas por causa do surgimento de novas estirpes do Sars CoV-2 e agora as autoridades britânicas, desde logo o ministro da Saúde, Matt Hancock, admitem mesmo que há uma dessas variantes que pode ser resistente às vacinas.

Foi à variante detectada na África do Sul que o Governo britânico se referiu, apesar de ainda estar por apurar a génese desta estirpe, havendo mesmo quem defenda que é a mesma que está a afectar de forma severa o Reino Unido e que levou o Governo de Boris Johnson a declarar o confinamento integral em toda a Inglaterra, depois de a Escócia ter feito a mesma opção.

Começando por distinguir as duas variantes, Londres mandou cancelar todos os voos oriundos da África do Sul porque, como sublinhou Hancock, o Governo está "extremamente preocupado" com o potencial trágico desta nova variante, ao mesmo tempo que dezenas de países cortaram as ligações ao Reino Unido por causa da estirpe encontrada no país há mais de um mês.

Entretanto, a União Africana, pela voz do seu presidente, o Presidente sul-africano Cyril Ramaphosa, já veio manifestar grande inquietação pela possibilidade de a entrega de vacinas suficientes ao continente não ser possível no primeiro semestre de 2021 como era aguardado suceder.

A razão por detrás desta possibilidade é que a pandemia continua a alastrar no resto do mundo e, como alguns temiam, África tende a ficar para trás se as vacinas estiverem em falta e ou forem escassas para as necessidades dos países mais ricos e com mais capacidade financeira para as adquirir, apesar do esforço que está a ser desenvolvido pela União Africana, que criou uma plataforma online de forma a concentrar as aquisições ganhando tracção com a quantidade e os países envolvidos.

Todavia, em Angola, as autoridades insistem que as primeiras vacinas vão começar a chegar já em finais de Fevereiro e as primeiras inoculações terão lugar de imediato.

O caso especial africano

África tem passado melhor que o resto do mundo quanto ao impacto da infecção, pelo menos oficialmente, sendo que alguns especialistas admitem que isso se deve à baixa idade média da população continental, nalguns países inferior a 20 anos, outros admitem que o clima, ou mesmo, questões rácicas, podem estar por detrás deste fenómeno. Os mais cépticos, sublinhe-se, apontam como razão somente a escassa capacidade de recolha de dados e o facto de a maior parte das mortes passar sem ser registada por razões culturais, por exemplo, o facto de muitas famílias enterrarem os seus mortos nas proximidades das suas casas sem que as autoridades oficiais disso sejam informadas.

O desvio das vacinas destinadas a África para os países ocidentais é uma possibilidade para que o continente vá ficando para trás, mas há outras razões igualmente salientes e tecnicamente explicáveis e podem conduzir a que a Covid-19 seja, no futuro, mais uma doença radicada nos países mais pobres, como os africanos.

Covid-19, a doença dos ricos que vai ficar apenas entre os pobres?

As complexas exigências técnicas de conservação e transporte da maioria das vacinas que se conhecem actualmente para a Covid-19 podem ser determinantes para que esta infecção venha a ser, no futuro, mais uma doença dos países pobres, a exemplo de outras, como a malária ou a febre amarela.

A esperança de que esse cenário não se confirme pode estar nas vacinas cujas especificidades técnicas ainda estão por anunciar. Mas há uma que promete ser a solução para os mais desfavorecidos.

Os dados existentes dizem que das largas centenas de milhões de doses de vacinas já adquiridas por antecipação, mais de 80% estão destinadas, ou em uso, os países ricos e apenas 14% têm como destino os países mais pobres, quase exclusivamente asiáticos e da América Latina, sendo que África está quase totalmente fora deste mapa de distribuição antecipada das vacinas.

Isto, apesar de já há alguns meses a União Africana ter anunciado a criação de uma plataforma online para agregar as encomendas dos diferentes países de forma a que as aquisições em quantidade permitam ganhos de competitividade no momento em que o mundo inteiro estiver a competir pelas vacinas existentes no mercado.

E se se repetir o que sucedeu no início da pandemia, quando alguns países como os EUA chegaram a ser acusados de desviar, ou mesmo "roubar" encomendas de ventiladores e equipamento de protecção que estavam destinados a outros países de forma a contornar a escassez deste tipo de material no mercado, como se estima que venha a suceder com a vacina.

Por exemplo, o continente africano, mas também a maior parte dos países asiáticos ou ainda da América Latina, dificilmente vão conseguir condições em quantidade e qualidade para garantir uma distribuição generalizada de vacinas que, para serem armazenadas em segurança, exigem temperaturas de 20 a 70 graus negativos, linhas de frio contínuas e sem quebras de energia para garantir a sua eficácia, como camiões frigoríficos com especificidades que em muito ultrapassam os normais para transporte de medicamentos comuns.

Se este cenário se vier a verificar, a par da evidente incapacidade de resposta à gigantesca e complexa operação de logística que permita levar a vacina a todos os cantos do mundo, seguramente que os países mais pobres e menos influentes correm o risco de ficar para trás.

Isto, porque, depois de resolvido o problema nos países ricos - onde está a capacidade científica de criar soluções -, a Covid-19, no pior cenário, transformar-se-á, com o passar do tempo, numa doença endémica nalguns cantos do globo mais empobrecidos e sem capacidade de resposta. Patologias como a malária, a febre amarela, a poliomielite ou o dengue são disso bons exemplos, que, estando praticamente erradicados nos países ricos, resistem e matam aos milhões nos países pobres.

Esforço global que não é visto desde a II Guerra Mundial

Desde Dezembro, a maioria dos países ricos deram início a campanhas de vacinação das suas populações mais expostas, como os idosos e o pessoal médico e das forças de segurança, passando depois, já em Janeiro, à restante população.

Em África, estes timings tendem a ser mais demorados e estima-se que só após os primeiros meses de 2021 as campanhas de vacinação generalizadas poderão ter início, embora os países, per si, possam, como alguns já anunciaram, avançar com a vacinação do pessoal de saúde, forças de segurança...

Para além das vantagens que este início das campanhas de vacinação vão representar para as economias, especialmente as mais dependentes da exportação de matérias-primas, como o petróleo, estão igualmente na linha da frente dos benefícios a retoma da normalidade e o fim progressivo dos severos confinamentos que foram aplicados em muitos países para procurar estancar a progressão da infecção.

Por exemplo, o Bangladesh - as Filipinas vão pelo mesmo caminho - foi um dos primeiros países do mundo menos desenvolvido a apostar nesta vacina da AstraZeneca/Oxford, sublinhando o seu ministro da Saúde, Zahid Maleque, que foram compradas por antecipação 30 milhões de doses devido à possibilidade de armazenamento a temperaturas entre os 2 e os 8 graus, o que permite ao país ter capacidade de resposta para o seu armazenamento.

Isso mesmo sublinhou o cientista-chefe da OMS, Soumya Swaminathan, que, citado pelas agências, disse estar ansioso por verificar osa dados globais sobre a eficácia e a segurança desta vacina, como das restantes, de forma a encorajar a que seja "facilitada a sua distribuição porque se trata de uma vasta operação que tem de atingir milhões e milhões de pessoas".

UNICEF está a organizar maior operação logística do mundo

O UNICEF (Fundo das Nações Unidas para a Infância) está a posicionar-se como o maior comprador de vacinas do mundo de forma a poder levar a solução para a infecção por Covid-19 a 92 países, onde estão, incluindo Angola, aqueles com maiores dificuldades para adquirir as vacinas disponíveis no mercado e com as mais deficientes redes de logística.

Este esforço do UNICEF envolve a aquisição de mais de 2 mil milhões de vacinas, o que envolve, segundo avançou, ainda em Dezemebro, a directora do departamento de distribuição de bens, Etleva Kadilli, ao site UN News, perto de 350 parceiros em todo o planeta, incluindo companhias de aviação, de transportes marítimos e terrestres e empresas de logística.

A operação está a ser conduzida para que as vacinas possam começar a ser distribuídas logo que estejam disponíveis no mercado, adiantado Kadilli que só vai ser possível levar este plano em frente com sucesso se os parceiros estiverem igualmente empenhados.

Trata-se nem mais nem menos do maior esforço logístico de sempre realizado pela UNICEF desde que esta agência da ONU foi criada em Dezembro de 1946, com sede em Nova Iorque, EUA, apontando esta responsável como fundamental garantir que as vacinas chegam aos locais definidos no plano "imediatamente após estarem disponíveis e da forma mais segura possível".

"É uma operação gigantesca e histórica que exige sólidas garantias de transportes no terreno", disse Etleva Kadilli, referindo-se ao facto de estar em causa o transporte de muitos milhares de toneladas de material, desde logo as vacinas com as condições técnicas exigentes, como as baixas temperaturas no seu armazenamento, as seringas, o equipamento de protecção pessoal que está na linha da frente desta operação planetária que tem como um dos principais parceiros a IATA, a Associação Internacional de Transportes Aéreos.

Os 92 países que estão no mapa desta gigantesca operação logística, quase todos de baixo e médio rendimento, vão estar no caminho da maior e mais rápida operação logística de sempre liderada pelo UNICEF, embora o "Fundo" conte com uma larga experiência nesta área visto que anualmente já distribui milhões de vacinas em mais de 100 países do mundo.

Para garantir o sucesso desta empreitada, ainda segundo o site UN News, o UNICEF e a Organização Mundial de Saúde (OMS) estão já no terreno a mapear as linhas de distribuição existentes, anto privadas como públicas, de forma a serem introduzidas neste esforço, contando, para isso com o apoio dos Governos, especialmente no aproveitamento dos pré-existentes equipamentos de armazenamento a frio.

Uma ajuda excepcional para este esforço é o investimento já feito, especialmente em África, desde 2017, com a instalação de mais de 40 mil cadeias de frio incluindo equipamento desta natureza a funcionar a energia solar, ao mesmo tempo que a energia solar está a ser utlizada para a montagem de equipamento agora onde ainda não existe.

As vacinas de distribuição prioritária nesta operação são aquelas que foram ou estão a ser produzidas por empresas agregadas à COVAX, um mecanismo internacional que integra a Aliança de Vacinas (GAVI) e a OMS.