Este episódio, grave no contexto de tensão existente entre os dois países, surgiu dois dias depois de os ministros dos Negócios Estrangeiros do Ruanda e da RDC, Vicent Birunda e Christophe Lutundula, respectivamente, terem assinado em Luanda, numa Cimeira onde participou Téte António e foi organizada por indicação do Presidente João Lourenço, um acordo que visa a definição de um roteiro para a paz.

A rápida resposta de Kinshasa a negar intenção e a admitir que se tratou de um erro, levou a uma redução das probabilidades de escalada naquilo que já é um conflito de baixa intensidade mas prolongado, entre o Ruanda e a RDC.

O Ruanda é acusado pelo governo congolês de estar a violar o território do leste do país, especialmente na província do Kivu Norte, e a gerar instabilidade através do apoio logístico e financeiro ao Movimento 23 de Março (M23), um grupo de guerrilha que foi criado em 2012 mas estava adormecido até meados de 2021, quando voltou a reactivar as suas células e a efectuar brutais ataques às aldeias da região, matando largas dezenas de pessoas de forma sanguinária.

Em comunicado, o Ruanda acusou a RDC de ter violado o seu espaço aéreo na segunda-feira através de um voo efectuado por um caça Sukhoi 25, um avião da década de 1970 usado no tempo da União Soviética para operações de apoio às unidades de infantaria no solo.

Kinshasa, depois de admitir este voo, garantiu que foi não-intencional e que o aparelho em questão não estava armado, tendo a entrada inadvertida no espaço aéreo do Ruanda ocorrido durante um voo regular de reconhecimento.

Tendo ainda o Governo de Félix Tshisekedi, sublinhado que da mesma forma que o Congo defende o seu território, respeita o território dos seus vizinhos.

Este episódio não mereceu qualquer resposta miliar por parte do Ruanda, embora o Sukhoi 25 congolês tenha mesmo estado perto da cidade e do seu aeroporto de Rubavu, no oeste ruandês, embora no comunicado emitido de seguida Kigali tenha considerado ter-se tratado de uma provocação.

Recorde-se que ainda a 03 de Novembro, o Presidente da RDC, Félix Tshisekedi, fez uma comunicação ao país, através da rádio e da televisão públicas, onde pede à população que se una às forças de segurança para dar uma resposta clara aos invasores, que disse serem as forças do Ruanda e apoiadas por este país, como o M23.

Segundo avança a Radio Okapi, uma rádio criada pelas Nações Unidas, na RDC, Félix Tshisekedi, para "fazer face a esta guerra de agressão", apelou a todos os elementos das FATDC e da Polícia Nacional a evidenciarem o seu patriotismo "defendendo a todo o custo a integridade do território nacional" e garantir a "segurança de todos os congoleses" de "todos os ataques, venham eles de onde vierem".

"A guerra que nos está a ser imposta pelos nossos vizinhos (Ruanda) exige a todos os congoleses sacrifícios e este é o momento de anular as divergências políticas internas para lidar com esta ameaça externa e defender a nossa Pátria mãe", avisou o Chefe de Estado naquilo que é claramente uma retórica de Estado em guerra, assumindo que "mais uma vez o povo congolês vai sair vitorioso deste desafio histórico".

A piorar este contexto, já por natureza complexo, a missão da ONU na RDC, apesar de ser a mais custosa e mais alargada em todo o mundo, a MONUSCO, tem sido fortemente contestada, e mesmo alvo de ataques populares, pela sua ineficácia a travar a acção das guerrilhas no leste da RDC, embora tenha nos seus estatutos, a componente militar de combate, contando, para isso, com um contingente alargado e equipamento igualmente substantivo, incluindo helicópteros de ataque e blindados

A tábua de salvação oferecida pela diplomacia

Depois de longos meses de escaramuças fronteiriças e de combates acessos entre FARDC e o M23, e mesmo episódios de troca de tiros entre miliares dos dois países na linha de fronteira, com ameaças de parte a parte, alguns países da região da África do Leste, como o Quénia, optaram por enviar uma força militar de interposição para o leste do Congo e em Luanda, o Presidente João Lourenço voltou a vestir a camisa de "campeão da paz e da estabilidade em África" que lhe foi oferecida pela União Africana e voltou a convidar para a capital angolana os protagonistas desta crise que ainda vai no adro mas que tem um potencial inigualável para incendiar as pradarias e as florestas da África Central como nenhum outro.

Este fio narrativo que pode levar a um final infeliz, tem um contexto que se alastra no tempo até à distante década de 1990 mas que ganhou um vigor renovado nos últimos tempos, especialmente a partir de meados de 2021...

Face a este histórico e contexto, um conflito aberto entre estes dois vizinhos alastraria rapidamente por toda a África Central, estando a diplomacia à procura uma saída mas enquanto tal não sucede, os vizinhos colocam forças no terreno para uma eventual interposição que impeça a explosão deste barril de pólvora que o antigo Presidente da RDC, Joseph Kabila disse ter potencial para "desestabilizar todo o mundo, não apenas África" devido à sua importância estratégica como fornecedor de recursos naturais absolutamente vitais para toda a Humanidade, desde logo os incontornáveis para as novas indústrias tecnológicas coltão e cobalto.

O Quénia, o vizinho do leste, com a postura interventiva do novo Presidente, William Ruto, optou por enviar tropa para o leste do Congo de forma a travar eventuais impetuosidades externas à RDC, como ficou, de resto, definido na recente reunião da Comunidade da África do Leste (EAC, sigla em inglês), que teve lugar em Nairobi, que serviu exclusivamente para analisar a situação de extrema tensão no leste congolês, embora esta força de interposição deva, de acordo com a decisão de 20 de Junho, envolver ainda tropas de outros países da região, esperando-se a todo o momento o anúncio desses contributos.

Depois, a 06 de Julho, o Presidente Tshisekedi e o Presidente Kagame, aceitaram encontrar-se em Luanda, a convite de João Lourenço, para uma Cimeira Tripartida, onde, sob os auspícios da Conferência Internacional da Região dos Grandes Lagos (CIRGL), foi assinado um documento norteador dos passos para alcançar a paz, embora seja hoje claro que entre os envolvidos, surgiram actos de contravapor para que esse objectivo fosse alcançado.

Já em Outubro, foi o Presidente francês, Emmanuel Macron, que conseguiu juntar os dois lideres regionais, Kagame e Tshisekedi, durante a Assembleia-Geral da ONU, em Nova Iorque, onde, novamente, os princípios norteadores de um cessar-fogo foram assumidos por ambos os Chefes de Estado, que inclua a diluição imediata do M23 das suas posições, mas, mais uma vez, como o comprovam os últimos acontecimentos, alguém torpedeou este processo internamente.

Face a este intenso mas infrutífero esforço diplomático, Tshisekedi lamentou que a paz não esteja a ser a opção primeira, sublinhando que da sua parte estão a ser feitos todos os esforços.

Recorde-se que o Governo ruandês desde o início deste conflito latente, por vezes, aberto, outras, mas sem que tenha ainda chegado à condição de guerra total, sempre negou quaisquer intenções de desestabilizar o leste congolês e o seu ministro dos Negócios Estrangeiros, Vicent Birunda, disse, citado pela France 24, em Julho, que Kigali quer uma redução das tensões com a RDC, admitindo, todavia, que estas aumentam a cada dia que passa.

Mais, Vicent Birunda afirmou mesmo que o Ruanda "ripostará de imediato em caso de qualquer agressão a partir da RDC".

Luanda, a derradeira oportunidade para a paz

Num cenário com estes ingredientes a puxar os nervos para a flor da pele, o Presidente João Lourenço envergou a camisa de "campeão da paz e da estabilidade em África" que lhe foi entregue pela União Africana e voltou a convidar, este fim-de-semana, para a capital angolana os protagonistas desta crise que ainda vai no adro mas que tem um potencial inigualável para incendiar as pradarias e as florestas da África Central como nenhum outro.

Com os ministros dos Negócios Estrangeiros do Ruanda, Vicent Birunda, e da RDC, Christophe Lutundula, que é ainda vice-primeiro-ministro, amesados por Téte António, o responsável pela diplomacia angolana, juntos em Luanda, foi possível chegar a mais um comunicado final considerado essencial para desbravar terras para planar a estabilidade nos Grandes Lagos.

No arranque dos trabalhos de onde saiu este roteiro para a paz nos Grandes Lagos, João Lourenço colocou os pontos nos ís dos objectivos desta tripartida, que eram, como o documento substancia, e os próximos dias dirão se correu melhor que as demais já acontecidas, encontrar uma estrada sem obstáculos para a paz fazer o seu percurso.

Paralelamente ao encontro entre os ministros e a introdução feita pelo Presidente angolano, suporte essencial para este renovado "mapa para a paz" nos Grandes Lagos, decorreram encontros no âmbito da inteligência, militar e organizacional, de forma a que as minudências que tantas vezes são apontadas como entraves ao sucesso destes esforços, não possam ser esgrimidos por nenhuma das partes viso que os temas foram igualmente abordados onde a acção efectivamente tem lugar...

E ficou ainda em evidência que o processo de Luanda e de Nairobi são complementares e não autónomos no essencial, que é objectivamente evitar mais um trágico conflito no continente africano, que já vive conflitos de larga escala nas suas mais diversas latitudes, desde logo na República Centro-Africana, nos vários países do Sahel, Mali, Burquina Faso, Níger, Chade, Sudão, na Etiópia ou no agora menos visível mas explosivo potencialmente jogo perigoso em curso entre Marrocos e a Argélia.

Ver links em baixo nesta página para revisitar a cobertura do Novo Jornal à persistente crise no leste da RDC