A doença sempre convive com a humanidade desde os primórdios e a forma como o homem olha para ela teve sempre uma relação directa com o conhecimento dominante. De uma perspectiva mais espiritual ou religiosa em que a doença era vista como castigo dos deuses ou povoamento da alma por espíritos malignos até à perspectiva mais biológica e molecular, cujos píncaros se situam hoje nas contribuições robustas das neurociências, a compreensão da doença como fenómeno humano constitui uma longa e encantadora viagem das trevas à luz. Compreender a doença na sua essência constitui sempre um gigante desafio para a ciência, que tem engrossado a humanidade com conhecimento que tem suportado a marcha evolutiva da humanidade.

Assim, o tratamento das doenças que sempre ocupou posição relevante nas sociedades humanas acompanhou a visão dominante que se tinha de doença. A singularidade da espécie humana reside na cultura que produz e essa emana da consciência humana. Por isso, conhecer a doença também é uma produção cultural, e dos seus desdobramentos resultaram práticas culturais que constituem verdadeiros traços das tradições e dos diferentes povos. É, pois, natural que, na distância em que nos encontramos hoje dos primórdios da humanidade, o conhecimento destas práticas não se confine ao território das ciências médicas, mas se estenda à sociologia, à antropologia, à economia e muito mais. Nos nossos dias, contudo, torna-se evidente uma supremacia das teorias biomédicas na definição dos conceitos de doença e saúde. Assim sendo, sem descurar a camada que a dimensão social pode emprestar a estes conceitos, o núcleo do conceito é fundamentalmente biológico, sendo as interacções entre o domínio social do conceito e o domínio biológico que conferem complexidade ao fenómeno.

Quanto ao albinismo, podemos dizer que é um problema que assume dimensão social particular porque afecta a pele humana, que tem um forte apelo identitário. Esse apelo identitário, ligado à pele humana, derivou em construções sociais geradoras de conflitos que ainda hoje dilaceram as sociedades humanas, como é o caso do racismo. A ideia da existência de raças, baseadas, sobretudo no tom da pele, é um grande equívoco da humanidade que a biologia tratou de desconstruir. De facto, a descrição do genoma humano derrubou em definitivo a ideia de existência de raças humanas distintas, desqualificando todas as teorias que sustentavam o contrário. É com este estofo moral que as ciências biológicas se sentem legitimadas a ocupar o trono na definição dos conceitos de doença/saúde.

Um voo panorâmico pela literatura médica permite-nos concluir que os termos mais comuns para definir albinismo são: genetic disorder em inglês, traduzido para a literatura médica brasileira como desordem genética. O dicionário inglês diz que Disorder - is an illness that disrupts normal physical or mental functions. "Illness" no dicionário "is a disease or period of sickness... ". A única tradução para português que encontrei para "illness" é doença ou enfermidade. Isso significa que a literatura médica dominante continua a considerar o albinismo uma doença de base genética, estando bem caracterizadas as alterações genéticas que derivam fenotipicamente do albinismo.

Os críticos deste modelo teórico-conceitual de raiz biomédica consideram que ele constitui "um obstáculo epistemológico" por circunscrever a abordagem às vidas singulares e preocupar-se mais com "o uso de entidades nosológicas que procuram organizar as existências em parâmetros clínicos e/ou de classificação para registrar perfis úteis da funcionalidade, incapacidade e saúde supostamente representativos de uma neutralidade científica que reduz pessoas às doenças, deficiências, rótulos estigmatizantes, rótulos que codificam uma passividade dada como irreversível e genérica". Esses críticos defendem que uma abordagem que considera os albinos como pessoas com deficiência os torna mais visíveis e reconhecidos, contornando rótulos estigmatizantes e acções discriminativas.

A expressão pessoa com deficiência tem sido usada para definir a ausência ou disfunção de uma estrutura psíquica, fisiológica ou anatómica. Conceito definido pela Organização Mundial da Saúde, a expressão pode ser aplicada referindo-se a qualquer pessoa que tenha impedimento de longo-prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial.

Entretanto, o termo deficiente para denominar pessoas com deficiência também está longe de ser consensual e tem sido considerado por alguns cientistas sociais inadequado, pois leva consigo uma carga negativa depreciativa da pessoa. Assim, nalguns contextos, tem sido proposto o termo diversidade funcional, uma vez que todas as pessoas precisam de ajuda nalgum momento das suas vidas, especialmente na infância e na velhice. A lógica deste modelo conceitual é eminentemente social, na perspectiva da inclusão.

Pessoalmente não encontro contradição em considerar os dois modelos como válidos. De um lado está a lógica biomédica que parte das alterações moleculares para perceber manifestações clínicas e estabelecer um quadro clínico determinado. A outra face é a perspectiva social que considera a inclusão para garantir equidade nos cuidados de saúde a garantir nesta população específica ou mesmo diferente. Não me parece que a estigmatização e a discriminação que atinge os albinos decorra do facto de considerar o albinismo na lógica médica, mas, sim, de um conjunto de representações sociais e identitárias que erguem tabus em torno desta população específica. Derrubar estes tabus e desmistificar o albinismo é o caminho para a inclusão, e isso faz-se com informação, com conhecimento e não com reducionismos eufemísticos que pouco ou nada abonam para esbater diferenças.

Por fim, vale dizer que as teorias e conceitos são representações da realidade, mas não são a realidade em si mesmo. Pela objectividade imanente, teorias e conceitos subtraem à realidade a complexidade. A reconstituição mental desta complexidade resulta da acomodação cognitiva que fazemos destas teorias sendo almofadas desta acomodação o conhecimento prévio, a memória, as vivências e experiências. Por isso, as realidades podem ser percebidas de maneira distinta pelos seres cognoscentes. As teorias científicas por mais explícitas que pareçam não constituem nunca dogmas inatacáveis. Quando as pessoas consideram os médicos ignorantes, simplesmente porque pensam o albinismo a partir de pressupostos intrínsecos ao seu campo de estudo, isto é manifestamente um comportamento antiético e refratário ao debate salutar que caracteriza a ciência.

O albinismo, na nossa perspectiva, é, sim, uma doença genética, cujas alterações moleculares explicam um conjunto de manifestações clínicas reconhecíveis que permitem estabelecer um quadro clínico tipo. A estigmatização e a discriminação que afectam os albinos não resultam desta tipificação clínica do albinismo, mas de representações sociais dirigidas que desembocam no apagamento social desta população específica. Por isso, faz todo o sentido que a abordagem do fenómeno não se circunscreva aos limites do modelo biomédico, mas revista-se, igualmente, de uma perspectiva social. n

*Médico, docente de Bioquímica, Faculdade de Medicina UAN