A obra de Saramago narra a história da epidemia da cegueira branca que se espalha por uma cidade, causando um grande colapso na vida das pessoas e abalando estruturas sociais. Uma cegueira branca, como um mar de leite e jamais conhecida, alastra-se rapidamente em forma de epidemia. O Governo decide-se a agir, e as pessoas infectadas são colocadas em quarentena com recursos limitados, o que irá desvendar aos poucos as características primitivas do ser humano.

A forma da epidemia não diminui com as atitudes tomadas pelo Governo e, depressa, todo o mundo se torna cego, mas apenas uma mulher, misteriosa e secretamente, mantém a visão, enfrentando todos os horrores que serão causados, presenciando visualmente todos os sentimentos que se desenrolam na obra: poder, ganância, obediência, servidão, carinho, desejo, vergonha, relação ente dominadores e dominados, entre subjugadores e subjugados. Saramago mostra, através desta obra bastante marcante e com a sua escrita peculiar, as reacções do ser humano às necessidades, à incapacidade, à impotência, à indiferença, ao desprezo e ao abandono. Quase 10 anos depois (em 2004), Saramago surge com "Ensaio sobre a Lucidez", em que relata que, num país imaginário, decorre, com toda a normalidade, um processo eleitoral. No final do dia, contados os votos, verifica-se que, na capital, pelo menos 70% dos eleitores votaram em branco.

Repetidas as eleições no domingo seguinte, o número de votos em branco ultrapassa os 80%. Preocupado e desconfiado, o Governo, em vez de se interrogar sobre os motivos que terão levado os eleitores a votar em branco, decide desencadear uma vasta operação policial para descobrir qual é o foco infeccioso que está a minar a sua base política e eliminá-lo. E aí desencadeia-se um processo de ruptura violenta entre o poder político e o povo. Este "Ensaio sobre a Lucidez" é uma interessante alegoria sobre a fragilidade do sistema político, dos governantes e das instituições que nos governam. É, na verdade, um permanente questionamento dos cidadãos ao sistema político, governantes e instituições. Quanto mais "lúcidos" se tornam os cidadãos, maior escrutínio fazem aos poderes dominantes.


Saramago já não está entre nós (morreu em Junho de 2010), mas a actual realidade angolana sempre pode inspirar a qualquer dos seus apreciadores a completar a trilogia com um "Ensaio sobre a Surdez". Andam todos preocupados em querer falar, em querer aparecer, em ser o centro das atenções, em querer impor uma narrativa. Andam todos focados em promover ideias pré-concebidas, ideologias, conteúdos programáticos, em dar orientações ou baixar ordens, mas não há preocupação em se ouvir o outro, o próximo. Tal como proliferam as formações em oratória e de como falar bem em público, deviam surgir, em sentido contrário, formações para ensinar a ouvir, a escutar mais o que os outros têm para dizer para contribuir. Governar é também saber ouvir os cidadãos, perceber quais são as suas expectativas, ambições, desejos e anseios. Não se pode ter um Governo que só ouve o que lhe convém e lhe agrada aos ouvidos, que faz ouvidos de mercador ou "ignora com sucesso" todas as narrativas que lhe são inconvenientes.

Auxiliares que falam e não são ouvidos pelo líder ou que nem tentam falar porque sabem que não serão ouvidos, com receios de falar porque o conteúdo do discurso surge acompanhado de verdades inconvenientes. Neste "Ensaio sobre a Surdez", muito Made in Angola, as guerras surdas institucionais, palacianas e partidárias prevalecem e atrasam muito o seu desenvolvimento/crescimento social. E quem não ouve os outros também não consegue ter a capacidade de se ouvir a si mesmo, ouvir o seu Eu e isto não é um bom sinal. Quem governa é quem tem de estabelecer, promover iniciativas para ouvir os governados. Não pode passar anos "surdo" e apenas ouvir-lhes quando precisa do seu voto, do seu suporte partidário ou para encher comícios. .

Este "Ensaio sobre a Surdez" faz deste Estado, durante anos, um ente "surdo-mudo" no relacionamento com a sua Diáspora. Um Estado que, através das suas embaixadas ou missões consulares, hostilizou, limitou ou negou direitos a concidadãos que lhe questionavam as suas políticas internas e a falta de estratégias para a sua Diáspora. Um Estado que precisa de perceber que quem durante anos não foi tido e nem ouvido, como foi a nossa Diáspora, tem hoje muitas perguntas entaladas e cada oportunidade que tem (e que não são muitas) para abordar, para questionar os seus governantes, também aproveita para manifestar o desagrado pela indiferença no tratamento que lhe foi destinado e a "surdez governativa" que imperou durante anos. Louvo a coragem, atitude e iniciativa do Presidente João Lourenço que, nas suas viagens ao estrangeiro, colocou na agenda encontros com as comunidades angolanas, sendo Portugal, África do Sul, Bélgica e França bons exemplos.

Todos estes anos de "surdez governativa" criaram dificuldades aos governantes em abordar as nossas comunidades no exterior. Percebe-se que alguns encontros que se vão mantendo são sempre marcados por muita tensão e debates acalorados. Se o "Ensaio sobre a Cegueira" e o "Ensaio sobre a Lucidez" ficaram pela ficção da obra saramaguiana, este "Ensaio sobre a Surdez" é real, tem país e personagens reais. Saramago iria, certamente, surpreender-se com os diálogos silenciosos, com a qualidade da "surdez governativa" e a quantidade de "guerras surdas" existentes nesta Nação real.