Em Setembro de 2023, o Fundo Monetário Internacional (FMI) recomendava que as opções de política económica do Executivo deviam centrar-se na gestão dos riscos, prestando particular atenção ao ajustamento fiscal e aos riscos para as finanças públicas. De concreto, o FMI considerava a reversão da derrapagem fiscal verificada em 2022 como crítica, e defendia a plena implementação da planeada reforma dos subsídios aos combustíveis como um dos elementos-chave. As recomendações do FMI tinham como objectivo fundamental criar espaço fiscal adicional, prosseguindo com as reformas estruturais fiscais e introduzindo novas medidas de políticas não fiscais.
No entanto, os instrumentos de política económica aprovados pelo Executivo para 2024, nomeadamente o Plano Nacional de Desenvolvimento (PND), o Orçamento Geral de Estado (OGE) e o Plano Anual de Endividamento (PAE), no nosso entender, não se mostraram suficientemente robustos; antes, revelam-se pouco consistentes entre si para garantir o alcance dos objectivos do Executivo.

Ora vejamos,
Na edição deste jornal do dia 24 de Novembro de 2023, demonstrámos que, entre outras coisas, o OGE"2024 tinha um gap de financiamento à tesouraria no valor de 3.594,40 mil milhões de kwanzas, aproximadamente 4,34 mil milhões de dólares americanos. A verdade é que as nossas projecções pecaram por excesso de optimismo. De facto, a leitura do PAE"2024 permite-nos identificar agora que o Executivo, através do Ministério das Finanças (MINFIN), prevê captar no mercado externo financiamento à tesouraria no valor de 5.000 mil milhões, ou seja, aproximadamente 6,04 mil milhões de dólares americanos. Essas projecções são alucinantes e só se pode tratar de uma verdadeira perversidade de muito mau gosto. Não existem quaisquer possibilidades para o MINFIN realizar com sucesso a captação destes montantes junto do mercado de capitais internacional. Assim, inscrever estes valores nos instrumentos programáticos do Executivo constitui um acto de irresponsabilidade fiscal incomensurável.

Quais as opções para o Executivo?
Para lidar com a incontornável realidade de um gap de financiamento à tesouraria naquele valor, o Executivo pode optar pela solução mais fácil no curto prazo - a substituição da captação de financiamento externo pela mobilização de mais financiamento interno. Essa solução seria amplamente aplaudida pelos bancos comerciais a operarem em Angola, mas condenaria as empresas e as famílias a ficarem sem margem para acesso ao crédito em condições aceitáveis (crowding-out effect).
Por outro lado, a mobilização de mais financiamento interno seria a típica solução de empurrar o problema com a barriga - um destino impiedoso, uma vez que os custos seriam a médio-prazo quase proibitivos. O OGE"2024 prevê a captação de financiamento interno no valor de 4,66 mil milhões de dólares americanos ao que deveria ser acrescentado o montante de 6,04 mil milhões de dólares americanos correspondentes ao gap de financiamento à tesouraria. Este volume de mobilização de financiamento interno elevaria exponencialmente os níveis da taxa de juro no mercado monetário, e manteria os níveis de endividamento público bem acima do recomendado pelo FMI para garantir a sustentabilidade das finanças públicas.
Por outro lado, a literatura económica é bastante sólida sobre os efeitos económicos da crise da dívida soberana. Os estudos sugerem que o rácio dívida/PIB é um forte indicador de incumprimento (default) nas economias emergentes. De facto, os riscos de incumprimento continuam a aumentar à medida que os atrasos nos pagamentos a credores e fornecedores se acumulam e o PIB se contrai. O risco de incumprimento permanecerá elevado até que a dívida seja reestruturada (Boonman, Jacobs and Kuper, 2015). A verdade é que já vimos a Equipa Económica (EE) do Executivo tomar decisões incoerentes e sem consistência macroeconómica no passado, pelo que não surpreenderia que o aumento da captação de dívida interna seja a solução mágica para cobrir o gap de financiamento à tesouraria.
Em nosso entender, a solução mais consistente com os fundamentos macroeconómicos da nossa economia é a redução da despesa pública. O nosso gasto público está sabidamente muito acima das nossas reais capacidades de gerar recursos financeiros. Ora, cortar de forma indiscriminada os gastos correntes da máquina pública ou o investimento público, resultaria no aprofundamento da recessão e no aumento da pobreza. Eis aí o dilema corneliano do Executivo: fazer o ajuste fiscal ou prevenir o agravamento da crise?
Considerando, entretanto, o peso relativo do serviço da dívida pública, estimado em 17,2 mil milhões de dólares americanos para 2024, a sua reestruturação afigura-se como a única saída para reduzir a despesa global e garantir o equilíbrio das contas públicas, permitindo ao Executivo manter o essencial dos investimentos e reprogramar todo o quadro macroeconómico para o relançamento do crescimento sustentado.

A reestruturação da dívida


Nos últimos meses de 2023 e nos primeiros de 2024, assistimos a diversos países do Sul global procederem a vários acordos de reestruturação da dívida para garantir a sustentabilidade das suas finanças públicas e relançar a actividade económica. Conforme notícias da Bloomberg Africa Watch, a Zâmbia, o Quénia e o Ghana são exemplos de países africanos que avançaram para a reestruturação da dívida. A estes países podemos agregar o Egipto que celebrou um acordo com o FMI para um resgate financeiro no valor de 10 mil milhões de dólares americanos.
Entendemos que o Executivo deve avançar para a reestruturação da dívida, para que seja capaz de promover o crescimento da economia não-petrolífera e estabilizar a taxa de câmbio, pressupostos para a redução da pobreza e do desemprego, bem como para o verdadeiro aumento dos rendimentos das famílias e melhoria da produtividade das empresas. Assim, é imperativo reestruturar, quer a dívida externa quer a dívida interna.
Ao nível da dívida externa será necessário ter uma abordagem diferenciada entre os credores chineses e ocidentais. Primeiro, para reestruturar a dívida externa junto do mercado chinês é imprescindível uma abordagem no âmbito político. A nossa experiência na negociação de operações financeiras com entidades chinesas diz-nos que é praticamente impossível um resultado positivo sem o aval político. Aqui, é necessário resgatar os níveis de excelentes relações com a China nos mesmos moldes dos que foram observados num passado recente. Uma reestruturação da dívida externa que não contemple os passivos junto da praça chinesa é praticamente insignificante. Para tal, os membros da EE devem ser recebidos pelos seus pares chineses com maior regularidade, o que infelizmente hoje não acontece.
Segundo, para uma abordagem junto dos credores ocidentais é preciso apresentar uma estratégia de acção que evidencie não só a necessidade da reestruturação, mas também o que será feito com os recursos financeiros que serão libertados. Aqui, o Executivo vai esbarrar na ausência de credibilidade das políticas económicas para convencer os credores. Neste sentido, seria oportuno o engajamento do Banco Mundial (BM) como sponsor desta operação, coadjuvando na elaboração da estratégia e monitorando a sua adequada implementação.
Concretamente, o papel do BM é crucial não só para conferir credibilidade à estratégia, mas também na formulação das próprias medidas para a promoção da economia não-petrolífera. A literatura económica é consensual quanto ao papel das políticas públicas em países produtores de petróleo na promoção da economia, nomeadamente no desenvolvimento do capital humano, incluindo o investimento na educação e saúde, bem como na melhoria do ambiente de investimento, para que o sector privado possa ter um papel decisivo na promoção do crescimento económico não-petrolífero (Hasanov et al., 2022). Os caminhos avançados acima já foram trilhados com relativo sucesso por outros países do Sul global. Porquê que Angola não pode seguir essa estratégia?
É preciso reconhecer que o OGE"2024 dispõe de recursos financeiros em moeda estrangeira suficientes para cobrir o serviço da dívida externa. No entanto, a reestruturação iria permitir libertar parte substancial desses recursos para i): acumular reservas internacionais líquidas (RILs) e ii): alimentar o mercado cambial com o objectivo de estabilizar o valor da moeda nacional face ao dólar americano e o acesso a divisas por parte das famílias e empresas nacionais.
Para a reestruturação da dívida interna, em nosso entender, a abordagem deve passar por i): duplicar a maturidade e ii): reduzir (pelo menos) para metade a taxa cupão de todos os títulos vincendos. Na prática sugere-se o resgate antecipado de toda carteira de títulos públicos em posse dos bancos, mediante a sua substituição por outros com maturidades mais longas e taxa cupão mais baixas.
A proposta parece drástica e arrojada? De facto, é! O momento exige medidas pensadas fora da caixa (thinking outside the box) e determinação na condução da política económica. O Presidente João Lourenço já demonstrou ser um líder sem receios e sem meias medidas para tocar nos grandes interesses instalados. De facto, essas alterações nas maturidades e nos níveis da taxa cupão vão inevitavelmente reduzir a rentabilidade dos capitais próprios (ROE) e dos activos (ROA) dos bancos. Entretanto, a reestruturação nestes termos não vai, seguramente, comprometer a solvabilidade e nem o cumprimento dos rácios regulamentares dos bancos.
Neste momento vale recordar a frase do Winston Churchill, Primeiro-Ministro do Reino Unido, entre os anos de 1940 a 1945 e de 1951 a 1955, quando dizia que "normalmente o adversário está a nossa frente e o inimigo ao nosso lado". Haja coragem Camaradas, o povo agradece!

Prof. Doutor Carlos A. da Fonseca Panzo
Professor Auxiliar de Economia e Investigador
Business and Economic School - ISG
23.02.2024

Bibliografia
- Fakhri J. Hasanov, Nader Alkathiri, Saad A. Alshahrani & Ryan Alyamani (2022) The impact of fiscal policy on non-oil GDP in Saudi Arabia, Applied Economics, 54:7, 793-806.
- Tjeerd M. Boonman, Jan P.A.M. Jacobs and Gerard H. Kuper (2015), Sovereign Debt Crises in Latin America, Emerging Markets Finance & Trade, Vol. 51, Supplement 6 pp. S80-S93