Angola gasta anualmente cerca de 500 milhões de dólares na importação de carne de bovinos e mais de 400 milhões com a importação de frangos. São dados divulgados pelo Ministro da Agricultura. Se juntarmos carnes de outras espécies de animais (porco, pato e outras) podemos estar a gastar mais de mil milhões, isto é, um "bi", com importação de carne, o que representa, actualmente, mais de 1% do PIB.

O país tem de reflectir seriamente sobre estes números. Desde logo, esta realidade não pode ser esquecida quando se exulta, ingenuamente ou não, com o prémio da FAO pelo proclamado êxito na luta contra a mal nutrição. Quando tentei alertar para a necessidade de percebermos que esse êxito só foi possível com recurso à importação e de refrearmos o entusiasmo que nos empolga em tais circunstâncias, quase vi o meu patriotismo ser posto em causa. Claro que agora não se sabe como manter tal nível de importações.

Retomo parte de um artigo de Julho do ano passado a propósito da aprovação pelo Executivo de um programa que supostamente deveria contribuir para a diminuição da importação de carne. O programa previa a importação de mais de 1,3 milhões de bovinos de raças diversas definidas por decreto (como se nas nossas condições isso fizesse algum sentido) e com custos absolutamente irrealistas. Todos os profissionais contactados por mim fora do círculo oficial e oficioso acharam que o programa era totalmente disparatado do ponto de vista técnico e financeiro.

Entretanto, fala-se agora da implantação no Kuando Kubango de 40 fazendas pecuárias e de um matadouro industrial com uma capacidade de abate de 400 bovinos por dia, o que vale dizer mais de 100 mil por ano. Isso representaria 20 mil toneladas de carne, cerca de 20% da quantidade de carne de vaca importada anualmente com os tais 500 milhões de dólares.

Não sei se é um projecto inserido no tal programa, ou se, como tantos outros, aparece caído do céu ou "oferecido" por empresários de créditos duvidosos a tentar vender banha de cobra. Ainda que sob o manto do investimento privado, a realização de um investimento dessa magnitude numa província sem história pecuária de relevo, sem infra-estruturas e da qual há pouco conhecimento científico em termos ecológicos é, desde logo, altamente questionável.

Além disso, mais uma vez se inicia algo sem se ter em conta a experiência do passado.

E que nos diz o passado? Primeiro, que a partir de meados dos anos 90 foi construído um matadouro industrial na Cahama, província do Cunene, uma região de muito maior concentração de gado do que o Cuangar, com uma capacidade de abate de 300 bois por dia, o que dava aproximadamente 80 mil por ano. Essa capacidade nunca foi atingida, ficou no máximo pela metade, não por razões ligadas à parte industrial, mas sim por falta de matéria-prima, pois o sistema de aquisição do gado aos criadores era muito complexo.

Ou seja, o matadouro, tal como a fábrica de açúcar e etanol da BIOCOM aqui referida no artigo anterior, e tantas outras no quadro dos projectos agrícolas de larga escala promovidas pelo Executivo, foi sobredimensionado, com um investimento de 17 milhões de dólares.

O negócio foi colapsando gradualmente e o matadouro foi vendido a empresários angolanos que pensavam que era lebre (terá sido comprado com empréstimo do BESA?) e hoje é um elefante branco bem escurecido pelo tempo de total abandono.

Segundo, que a importação de gado do Brasil revelou-se um mau negócio. Não se sabe ao certo a quantidade importada (talvez cerca de 100 mil cabeças), mas a taxa de mortalidade deve ter atingido mais de 40%. A maior parte dos compradores desse gado eram criadores iniciados, não tinham organização nem capacidade de gestão, por tal razão não poderiam nunca começar com gado sofisticado. Seria como aprender a conduzir num Ferrari, ainda mais numa picada, pois o país não tinha as mínimas condições para garantir a assistência técnica e veterinária requerida, principalmente porque esse gado era e é muito exigente.

Além disso, o gado foi importado sem cumprimento das mais elementares normas sanitárias, como a obrigatoriedade de quarentenas, daí que tenham sido introduzidas no país novas doenças e outras erradicadas desde há muito.

Mas também, por muito que custe acreditar, muito gado morreu de fome porque não havia pasto suficiente para a quantidade gado importada. Um outro caso de sobredimensionamento, como o das fábricas já relatado.

Ainda há pouco tempo encontrei um criador de gado, esse sim, com experiência no Brasil, que me confessou que a sua experiência tinha sido desastrosa, tendo perdido mais de 50% das dez mil cabeças que chegou a ter. Eu havia visitado a sua fazenda dez anos antes, e apesar de ter visto uma boa organização, contestei a possibilidade de sucesso porque não havia pasto suficiente para tantos animais. Imagine-se o que se terá passado com os tais criadores iniciados.

São muito conhecidos vários casos de criadores iniciados que nem sequer souberam contratar assistência técnica expatriada, pois frequentemente foram confrontados com muita incompetência ou com roubos descarados.

Isto não significa que não tenha havido casos de sucesso, embora poucos. O que preocupa, insisto, é a falta de avaliação de uns e de outros, de modo a podermos corrigir o que está mal. Mas uma vez mais, o mal começa na dificuldade de reconhecimento do erro, o que só pode ser explicado por ignorância desmedida ou por interesses escusos.

Não consigo compreender porque não se tenta aprender com a experiência da Namíbia ou do Botswana. Porque não se tem em conta a nossa própria experiência a partir dos anos 60, quando, com a competência de excelentes zootécnicos e criadores portugueses e angolanos Angola começou a desenvolver-se em termos de pecuária com baixos custos e alguma sustentabilidade, chegando a possuir um dos melhores serviços de veterinária do continente africano.

Reafirmo que enquanto as nossas opções estiverem ancoradas no fascínio por projectos de larga escala e nos interesses que estão por trás deles, não há diversificação da economia possível ou sustentável.

PS - Finalmente as autoridades bancárias disseram algo sobre a necessidade de se acabar com o escândalo do câmbio de rua. Mas a experiência diz-nos que na prática não mudará nada de essencial, pois a fonte de alimentação não será tocada. Alguém duvida? Aguardemos pelos acontecimentos.

*Coordenador do Observatório Político e Social de Angola