A revelação do surgimento de gangues violentos a disputarem o "território" da ajuda humanitária que chega mas não basta para acudir minimamente aos milhões de desesperados que vagueiam, como no "Mad Max" de George Miller e George Ogilvie, em Gaza, em busca de migalhas, é feita nesta segunda-feira, 30, pelo jornalista Jason Burke, em The Guardian.
Conta o correspondente do jornal britânico em Jerusalém que o surgimento de gangues como a nova peça na estrutura de gestão caótica do território, que até aqui era dividida pelos ocupantes israelitas e o que resta da máquina burocrática do Hamas, que desde 2006 geria a Faixa de Gaza e os seus 2,3 milhões de habitantes, foi notada inicialmente em Khan Younis, cidade do sul do território.
Esta cidade foi, a par da Cidade de Gaza, a capital desta faixa palestiniana de 40 kms por 9 kms de largura, encostada ao Mediterrâneo Oriental, ocupando 365 kms2 divididos por 2,3 milhões de habitantes desesperados e com fome, pelo menos 1/3 na iminência da morte, especialmente crianças e idosos, como relatam as agências da ONU, um dos locais para onde as Forças de Defesa Israelita (IDF) obrigaram milhões a fugir enquanto lhes destruíam as habitações e infra-estruturas sociais, escolas, hospitais...
Com mais de um milhões de pessoas que ali se refugiaram nestes quase dois anos de invasão israelita, e, como reconhecem as instâncias judiciais internacionais e líderes de dezenas de países, o último dos quais o primeiro-ministro espanhol Pedro Sánchez, um genocídio da população palestiniana, é para ali que também segue uma boa parte da escassa ajuda humanitária que as IDF deixam passar a conta-gotas.
Como as imagens de dor e fome excruciantes que correm os ecrãs do mundo demonstram, mesmo a escassa ajuda que ainda entra em Gaza não chega aos tachos vazios de mulheres e crianças que se amontoam junto às cozinhas improvisadas porque, como descreve Jason Burke, essa é agora, pelo menos em parte, disputada e usada por gangues que se digladiam para controlar as vias usadas pelos camiões e os armazéns das ONG's que ainda estão a tentar minimizar o sofrimento de milhões de palestinianos.
O fenómeno começou a ser percebido quando, nota a reportagem The Guardian, o pessoam médico do Hospital Nasser, em Khan Younis, recebeu um indivíduo ferido, não a combater os ocupantes israelitas mas sim devido a luta de gangues rivais pelo acesso aos sacos de farinha desviados e roubados dos camiões que os transportam.
O pior estava ainda para chegar: pouco depois deste paciente ter dado entrada no hospital, dezenas de homens armados forçaram a entrada na unidade hospitalar, ameaçaram o pessoal hospitalar, destruíram equipamento que sobrara dos ataques da aviação e artilharia israelita, tendo, na passada, chegado outro gangue, igualmente armado, tendo aí início uma intensa troca de fogo com armas automáticas. Ainda iria piorar...
Pouco depois chega ao local uma milícia igualmente armada enviada pelo ministro do Interior de Gaza, que pertence ao Hamas, para tentar restaurar a ordem, dando lugar a uma batalha intensa que só era conhecida em cenas de combate entre o Hamas e os ocupantes israelitas, que, segundo o relato, tinham os seus drones a sobrevoar o local.
Eis o retrato da nova Gaza, um território "Mad Max" que nem a ficção de 1979 criada por George Miller e George Ogilvie consegue equiparar-se, com dois gangues a digladiarem-se dentro de um hospital, onde chega a milícia governamental, começando um tiroteio selvático que estava a ser monitorizado do ar pelos drones das forças militares israelitas, tudo em resultado da fome e da miséria criada pelo bloqueio israelita, por vezes parcial, por vezes total, à ajuda humanitária.
A actual fase desta guerra, que é parte de um longo historial de conflito entre israelitas e palestinianos, que já vem de 1948, quando foi criado o Estado hebraico, a partir de terras ocupadas aos palestinianos delas expulsos à força num processo que ficou conhecido como "Nakba", uma limpeza étnica que agora se repete em Gaza, foi despoletada pelo assalto do Hamas e da Jihad Islâmica, a 07 de Outubro de 2023, ao sul de Israel, com um rasto de morte e violência de onde resultaram 1.200 mortos e perto de três mil feridos às mãos dos combatentes palestinianos.
Desde 08 de Outubro de 2023 (ver links em baixo), quando Israel lançou a vasta operação militar de invasão de Gaza, já foram mortos, oficialmente, mais de 55 mil civis palestinianos, na sua esmagadora maioria, pelo menos 50%, crianças, mulheres e idosos, embora algumas ONG's comecem a apontar para um número de mortos superior aos 400 mil, com milhares de corpos ainda sob os escombros de um território onde mais de 80% do seu edificado foi destruído pelas bombas israelitas.
Na sua reportagem, Jason Burke aponta para a existência actualmente de uma gigantesca guerra interna de controlo pelo poder do território que sobrar da invasão israelita, onde emergiram, mesmo numa altura em que as IDF não estão a retirar, pelo contrário, estão a realizar novas ofensivas a norte e no centro de Gaza, com pelo menos uma dúzia de milícias armadas, várias facções de movimentos jihadistas e ainda grupos organizados pelos líderes comunitários para protecção local...
O resultado deste contexto totalmente incontrolável por uma unidade de gestão, como era a do Hamas desde 2006, é uma fragmentação de Gaza por dezenas de áreas sob controlo de grupos armados de várias naturezas e com outros tantos objectivos, onde mesmo as IDF podem vir a ter dificuldades acrescidas apesar de algumas destas forças sejam sua criação para espalhar ainda mais o caos.
Uma das razões para este cenário, tal como estava no guião "Mad Max", é o lucro que é conseguido pelos grupos que controlam o mercado paralelo dos bens alimentares e medicamentos que atinge valores milionários e em crescendo à medida que a fome ganha contornos mais severos, sendo disso exemplo o custo de um saco de 25 kgs de farinha de trigo: 500 dólares norte-americanos.
Entretanto, o terror entre a população desprotegida e indefesa, face aos ocupantes israelitas e a estes bandos armados e violentos, continua a crescer, agora com um novo fenómeno que, como o jornal israelita Haaretz demonstrou, é a ordem dada pelos comantes das IDF aos seus soldados para atirarem a matar sobre a população que aguarda por ajuda humanitária nos postos oficiais que ainda subsistem, apesar de ali pouco ou nada chegar para aplacar a fome excruciante e as doenças que que já matam mais que as balas e as bombas israelitas.
Só na últma semana, pelo menos 120 civis foram mortos nestas circunstâncias, 23 apenas neste Domingo, 29, num posto de ajuda alimentar na Cidade de Gaza, para onde Telavive acaba de anunciar uma nova ofensiva de grande envergadura, alegadamente para eliminar focos de resistência do Hamas.