Na ocasião, recordou que, em Maio de 2014, foi aprovado o Programa Nacional de Humanização da Assistência na Saúde, que estabeleceu princípios claros de respeito pelo utente e de integração desse como parte activa da equipa de cuidados. Ao longo dos anos, este programa foi reforçado com a criação, em 2018, do Gabinete de Ética e Humanização e com a instalação de mais de 200 gabinetes de utentes em unidades sanitárias do País. No entanto, apesar da existência de uma base legal robusta e de sucessivas campanhas institucionais, os relatos de humilhações, filas intermináveis e atendimento desumanizado continuam a marcar a experiência de muitos cidadãos nos hospitais públicos.
A verdade é que, entre os avanços tecnológicos e os discursos oficiais, persiste um fosso evidente entre o quadro normativo e a realidade vivida pelos utentes. O Despacho n.º 1114/14, de 15 de Maio, reconhece que a qualidade do Sistema de Saúde depende, em grande medida, do relacionamento humano estabelecido entre profissionais e utentes. Esse diploma legal não se limita a enunciar boas intenções: aprova um programa nacional, define parâmetros e delega responsabilidades aos níveis mais altos do Ministério da Saúde. Ainda assim, passados mais de 10 anos, é frequente ouvirem-se nos corredores dos hospitais públicos histórias de desrespeito, insensibilidade e abandono que contrastam com os princípios legais e éticos proclamados.
Para além da carência de materiais médicos, é o tratamento desumano que mais fere os cidadãos, sobretudo os mais pobres, que não têm alternativa senão esperar e suportar. Uma palavra ríspida, um olhar indiferente ou uma atitude negligente transformam um momento de vulnerabilidade num episódio de humilhação.
Importa sublinhar que a humanização não é uma concessão dos profissionais aos utentes: é um direito consagrado, um dever institucional e uma condição para a qualidade do serviço. O próprio Programa Nacional de Humanização da Assistência na Saúde estabelece como objectivos fundamentais melhorar as relações entre profissionais e utentes, difundir uma nova cultura de atendimento e capacitar os trabalhadores para práticas baseadas na empatia, no respeito e na cidadania. Trata-se de requalificar os hospitais públicos, não apenas em termos técnicos, mas também humanos, tornando-os espaços de acolhimento, confiança e dignidade.
Curiosamente, o sector da Saúde tem conhecido, nos últimos meses, avanços significativos em várias frentes: o lançamento do Programa Nacional de Telemedicina e Ensino à Distância, a inauguração do Centro de Hemodiálise do Namibe, ambos agora em Outubro, a assinatura de acordos de financiamento para reforçar os serviços de cardiologia e a preparação de médicos para o uso ético da Inteligência Artificial são exemplos de iniciativas que visam modernizar e expandir a capacidade técnica do País. Estes desenvolvimentos merecem reconhecimento e representam passos importantes rumo a um sistema de saúde mais eficiente e abrangente.
Todavia, nenhum investimento tecnológico ou infra-estrutural poderá substituir a qualidade da relação humana entre profissional e utente. O desafio está em fazer coexistir inovação e humanidade, técnica e empatia, modernização e escuta. E, para isso, não bastam circulares ou discursos - é preciso liderança quotidiana nos hospitais, formação contínua e responsabilização efectiva.
Num momento em que o País faz apostas estratégicas para digitalizar e descentralizar os cuidados de saúde, é oportuno lembrar que humanizar é a base de tudo. As leis já existem, os programas estão definidos e as orientações são claras. Falta, contudo, que esse espírito chegue aos corredores dos hospitais, às salas de espera e às interacções diárias com os cidadãos. Humanizar é, afinal, devolver dignidade à relação mais básica que existe no Sistema de Saúde: a que se estabelece entre quem cuida e quem precisa de cuidados.n
*Mestre em Linguística pela Universidade Agostinho Neto