Diante de outros políticos mundiais, nomeadamente das antigas potências colonizadoras e escravocratas e apesar de garantir que estava ali para "abordar também as questões que dizem respeito à África", Lourenço deixou de lado um assunto prioritário para a UA, mas incómodo para os ocidentais.
Não é a primeira vez que, nesta matéria, o Presidente de Angola adopta posicionamentos diferentes em função do destinatário da mensagem. Um, na presença de ocidentais e outro, perante interlocutores africanos e/ou da Diáspora.
Dias antes da Assembleia Geral das Nações Unidas, na II Cimeira África-CARICOM (Comunidade do Caribe), em Addis-Abeba, sede da União Africana, o presidente da UA tinha defendido reforço da "nossa luta pela justiça reparadora a nível global".
Em Julho de 2024, quando já conhecia o tema da sua presidência da UA, em Luanda, ao lado de Luís Montenegro, primeiro-ministro de Portugal, antigo colonizador de Angola, Lourenço mostrou-se contra a agenda africana, afirmando que o seu País não pedirá "nunca" reparação pela escravatura e colonialismo.
Sete meses depois dessas garantias dadas a Portugal, novamente em Addis-Abeba, ao assumir a chefia da UA, mudou o discurso, abandonou ou suspendeu o "nunca" e manifestou-se pela "operacionalização de um modo prático da questão relativa à Justiça para os Africanos e os Afrodescendentes por meio de Reparações".
Considerou ainda que a "conjugação" do tema sobre as Reparações e o sobre investimento nas infra-estruturas, como factor de desenvolvimento de África "pode levar-nos a construir um canal de comunicação e de diálogo com os nossos parceiros internacionais".
A omissão da questão das Reparações no discurso de João Lourenço, de acordo com o diaspórico Alberto Monteiro de Castro, "é revelador da pouca importância que, sob sua liderança, o órgão continental dá ao assunto, ademais tendo em conta que foi da região que hoje é Angola que mais escravizados foram retirados à força do continente.
Atento às omissões e desiludido com o desempenho de Lourenço à frente da UA, em Agosto último, PLO Lumumba, em carta dirigida ao PR angolano, desabafou: "quando foi eleito, pensávamos que o senhor faria melhor, mas o senhor voltou à situação de fábrica".
Com estes ziguezagues, o Presidente angolano destapa as suas dificuldades em conciliar duas posições antagónicas: o seu genuíno e pró-ocidental "nunca exigiremos" Reparações às potências coloniais e o cumprimento da agenda central da União Africana.
Neste contexto, "talvez seja chegada a hora de criação de uma UA de povos, paralela a de governos", como defende Alberto Monteiro de Castro.
Enquanto Lourenço se mostrava mudo sobre o tema da UA deste ano, outros líderes africanos, nessa mesma Assembleia Geral da ONU, exigiam justiça reparadora, propondo acções concretas para o efeito e denunciando o silêncio ocidental sobre crimes coloniais.
O Presidente John Mahama, coerente com os seus ideais e com a agenda da União Africana, anunciou que o seu País, o Ghana, vai apresentar nas Nações Unidas uma moção para que o tráfico transatlântico de escravizados seja oficialmente reconhecido como o maior crime contra a humanidade da História.
Iniciativa que, para além da justiça simbólica, visa exigir reparações financeiras, devolução de peças de artes roubadas durante o período colonial e um acerto de contas global com o legado devastador da escravatura.
Com este posicionamento histórico, o Ghana, País de Kwame Nkrumah, pretende trazer para a agenda central internacional o deslocamento forçado de mais de 12,5 milhões de africanos para criar riqueza em países ocidentais.
"Devemos exigir reparações pela escravatura do nosso povo e pela colonização da nossa terra, que resultou no roubo de recursos naturais", sublinhou John Mahama, também advogado da União Africana para as Reparações.
Lembrou ainda a ironia histórica dos governos ocidentais terem pago "alegremente reparações aos antigos proprietários de escravos como compensação pela perda de sua "propriedade" - os próprios escravizados".
Já o Presidente da República Centro-Africana (RCA), Faustin Touadera, relacionando a actual dependência do continente ao tráfico de escravizados, defendeu a solidariedade continental para acabar com a "a era da dependência de África".
Sem titubear, advogando a "soberania contra a subordinação e a exploração", Touadera reafirmou o total apoio da RCA à iniciativa panafricana de reparações, condenou a persistente desigualdade global, afirmando ser "inaceitável ver a pobreza a piorar em África enquanto a riqueza se acumula nos países do Norte".
Paralelamente à Assembleia Geral da ONU, ainda sobre o mesmo tema, o Presidente do Senegal, Bassirou Faye, organizou um encontro sobre Justiça e Reparações Africanas, com o seu homólogo do Ghana e os primeiros-ministros do Burkina Faso, Serra Leoa e Barbados, no Monumento Nacional do Cemitério Africano de Nova Iorque, no coração de Manhattan.
Nesse lugar repleto de História e de memória, um dos mais antigos cemitérios de africanos de escravizados na América do Norte, o primeiro-ministro burkinabe, falando em nome dos três países (Faso, Mali e Níger) da Aliança dos Estados do Sahel (AES), apontou três áreas principais de reparações: justiça económica, para corrigir o legado do colonialismo; identidade e educação, por meio da restituição do património cultural e da integração da resistência africana nos currículos escolares; e solidariedade panafricana, para fortalecer o vínculo entre África e a sua Diáspora e construir um desenvolvimento equitativo.
Rimtalba Jean Emmanuel Ouédraogo propôs ainda a criação de museus de resistência, físicos e digitais, para preservar e transmitir a história; a organização de simpósios panafricanos sobre a restituição de propriedade cultural; o estabelecimento de programas para o envolvimento de especialistas da Diáspora em sectores estratégicos.
Defendeu igualmente a criação de fundos de investimento da Diáspora para apoiar PME e projectos sociais; bem como o desenvolvimento de parcerias culturais e educacionais com cidades com grandes populações afrodescendentes no mundo.
Por seu turno, Marc Hermanne Gninadoou Araba, representante permanente do Benin nas Nações Unidas, destacou a importância do ""património plural"", e da ""diversidade cultural como pilar da paz mundial"". ""Trabalhamos para religar África e as suas diásporas como gesto de reconhecimento aos afrodescendentes que desejam reivindicá-la"", disse na Assembleia Geral da ONU.
O Benin aprovou, no ano passado, uma lei que consagra o direito de retorno e à cidadania para os descendentes de africanos ao sul do Sahara deportados durante o período do infame comércio triangular e tráfico de escravizados.
Enquadrada no tema da UA, de 14 a 17 deste mês de Outubro, Accra vai reunir, em conferência internacional, entidades governamentais e sociedade civil africanas para discutir as Reparações, incluindo a "Década do Regresso" (2021-2031).
Década que abrange uma série de actividades, desde apoio ao processo de naturalização, campanhas de promoção do turismo, eventos sociais, culturais e diplomáticos, com o intuito de encorajar a Diáspora a regressar ao País dos seus ancestrais.
Através de cursos de línguas, reintegração cultural e cerimónias tradicionais, o programa procura não só restabelecer a cidadania africana, mas também criar e revitalizar laços ancestrais.
À semelhança de iniciativas promovidas pelo Benim, Ghana, Serra Leoa e outros estados africanos, a Guiné-Bissau decidiu aderir também à "Década do Regresso" com o objectivo de facilitar o retorno voluntário de descendentes guineenses, para um reencontro com a terra natal e para que estes possam contribuir para o desenvolvimento do País.
"O projecto de naturalização é apenas uma faceta das nossas acções, inseridas num contexto maior de reparação e repatriação", afirma Daiana Taborda Gomes, responsável pela iniciativa na Guiné Bissau, sublinhando a importância de assumir responsabilidades históricas e reintegrar a Diáspora nas melhores condições possíveis.
Se o porta-voz da UA ignora o tema da organização, outros estados e líderes africanos mostram-se empenhados em fazer cumprir, sem tergiversação, a agenda africana das Reparações.