Entende S. Exa. o Presidente da República que a preservação da confiança nos órgãos de Estado, a promoção da honestidade, da isenção e da lisura no exercício de funções públicas poderão reclamar, hoje, reacções penais mais intensas, quer a nível das condutas típicas quer das consequências jurídicas dos crimes, medidas de segurança e sanções acessórias aplicáveis. Outrossim, é seu entendimento que o quadro legal proposto pela Assembleia Nacional poderá ser insuficiente para atingir os desideratos político-criminais a que o Estado angolano, actualmente, se propõe, verificando-se até algum retrocesso em relação ao quadro legal vigente.

Quanto ao acto em si, o exercício do direito de veto político (embora esta classificação da prerrogativa em causa seja discutível, no entender de alguma doutrina) é um acto livre do Presidente da República, que há-de ser fundamentado em razões políticas e não, necessariamente, em razões de constitucionalidade ou legalidade do diploma vetado. Deste modo, é perfeitamente legítimo que S. Exa. o Presidente da República tenha exprimido a sua visão política sobre parte do diploma que lhe foi remetido para a promulgação. É, em nossa opinião, bastante salutar para o processo legislativo democrático que, sendo a Lei em causa resultado de uma proposta de Lei apresentada à Assembleia Nacional nos termos do Arts. 120.º al. i) e 167.º n.º 4 da CRA, S. Exa. o Presidente da República tenha usado de veto. Enriquece a cultura democrática e robustece o diploma legal em causa.

Já quanto às motivações do veto, julgamos ser curial suscitar-se algumas reflexões de ordem técnica. Em nosso entender, muito embora a visão do problema que subjaz às preocupações expendidas seja compreensível, talvez não seja a melhor abordagem. Estamos em crer que uma evolução penológica marcada pela intensificação das penas, mormente as de prisão, não se traduz, necessariamente, nos melhores sucessos em termos de prevenção e repressão criminais. Em boa verdade, na opinião da doutrina dominante, as penas de prisão já demonstraram a sua ineficácia enquanto instrumento de política criminal. As estatísticas evidenciam, à saciedade, que não existe uma relação directa entre o agravamento das penas e a diminuição dos índices de criminalidade. Acresce que é opinião dominante nesta matéria que as penas de prisão devem, inclusive, ser evitadas, devendo restringir-se aos crimes que protegem os bens jurídicos mais importantes e, dentro desses, apenas aqueles cuja prática não possa ser combatida com recurso a outros meios de dissuasão mais eficazes e menos gravosos.

Nem sempre (quase nunca, diríamos) a privação da liberdade por um longo período é factor de garantia de maior sucesso na ressocialização do agente, sendo esta a única finalidade admissível, abandonadas que estão, no Direito Penal moderno, as perspectivas juspenais que defendem, em relação ao agente, uma função puramente retributiva e estigmatizadora da pena. Outrossim, sendo a dignidade da pessoa humana uma das pedras basilares da Constituição da República e, nesse sentido, a liberdade pessoal seja um dos direitos fundamentais nela afirmados e protegidos, o encarceramento da pessoa apenas poderá ser admitido quando interesses de valor preponderante no quadro axiológico constitucional o justifiquem.

Em qualquer caso, mesmo quando necessária, a restrição desse direito fundamental há-se reger-se por critérios de estrita proporcionalidade e adequação, nos termos do n.º 1 do Art. 57.º da CRA, o que, desde logo, constitui limite inultrapassável para uma política criminal repressiva e carcerária que eleja como estratégia primordial o agravamento de molduras penais. Mesmo que tal política criminal hasteie a bandeira do «combate» a uma criminalidade endémica, os seus propósitos não podem ser atingidos à custa do sacrifício da pessoa e da sua dignidade, como, inquestionavelmente, sucede, em qualquer sistema penológico que privilegie a prevenção geral negativa, através da ameaça da pena, em detrimento de uma perspectiva penológica mais humanista, focada no agente do crime enquanto pessoa, e de uma abordagem do problema criminológico numa visão sociológico-sistémica, ou seja, procurando resolver o problema da criminalidade endémica combatendo os problemas sociais que lhe subjazem.

Se, em geral, a privação da liberdade se tem mostrado um factor criminógeno (porque gravemente dessocializador), para a criminalidade «de colarinho branco» a prisão efectiva, ainda que proporcional à dignidade penal da conduta, mostra-se, em grande medida, inócua, sendo encarada pelos agentes de condutas criminosas como um dano colateral necessário à obtenção de um benefício económico avultado. Ou seja, para a criminalidade de índole económico-financeira, uma estratégia político-criminal eficaz há-de ser diferenciada, menos focada na punição do agente e mais concentrada no evitamento de que o mesmo possa beneficiar-se dos proventos do ilícito. Aliás, modernas e actuais concepções penais, designadas por «direito penal premial», propugnam que, em relação a certos bens jurídicos passíveis de acção reparadora como forma de minimização do impacto ético-social e individual da conduta lesiva, o impulso voluntário do arguido que devolve aquilo com que ilegitimamente se locupletou ou que repara o prejuízo causado deve ser premiado. Isto é, deve ser-lhe atenuada (ou mesmo extinta) a responsabilidade penal, sempre que o efeito reparador do seu acto se mostre suficiente para a reintegração do sistema penal e para a dissuasão da prática futura do ilícito em causa. Assim, do mesmo passo, se produz a acção restaurativa da situação da vítima lesada (quando a haja) bem como se evita o potencial criminógeno da manutenção, pelo agente, das vantagens económicas do crime. O legislador foi sensível às actuais concepções nesta matéria, o que fica bem patente, no que concerne aos crimes em análise, nos Arts. 358.º n.º 6, 359.º n.º 6, 360.º n.º 5, 361.º n.º 4 e 366.º n.º 3 do Novo Código Penal.

No entanto, um juízo correcto sobre a problemática em análise há-de fazer-se através de uma leitura da mesma num contexto ainda mais vasto. Em termos de implementação de uma dada política criminal, múltiplos factores influenciam no seu sucesso, sendo a eficácia preventiva das penas cominadas tão só um deles. Por exemplo, a própria técnica legislativa utilizada na formulação dos tipos legais de crime pode revelar-se uma estratégia mais decisiva. No caso dos crimes cometidos no exercício de funções públicas e contra o exercício das mesmas (catálogo de crimes que se entrecruza, em certos aspectos, com o chamado «direito penal económico», o que convoca, desde logo, a problemática do tratamento dos «crimes de colarinho branco») a dificuldade probatória é de todos conhecida, particularmente quando estes tipos penais são praticados por titulares de cargos políticos. Logo, quanto mais complexa for a formulação dos tipos penais, quanto aos seus elementos objectivos e subjectivos, mais espinhosa será a tarefa de neles subsumir a conduta concreta do agente.

Por outro lado, uma actuação do Ministério Público em estrita defesa da legalidade democrática, pautada por critérios de objectividade (ainda que temperados com os espaços de oportunidade que o moderno processo penal propugna) e, bem assim, um ponderado recurso aos mecanismos de justiça penal negociada que a Constituição penal consinta e o processo penal acomode, revelam-se, hoje, armas muito eficazes contra a criminalidade mais complexa. Também a alocação de mais e melhores meios ao serviço de uma isenta, eficaz e legalmente enquadrada investigação criminal, marcada por uma melhor articulação entre a autoridade judiciária titular do processo e as polícias de investigação, bem como uma mais profícua aplicação das medidas de segurança e equiparadas quanto aos instrumentos, produtos e proventos do crime podem revelar-se elementos decisivos. (Continua na próxima edição)

*Jurista e docente universitário