A imposição sofrida, durante quase duas décadas, de uma hipotética lógica de consumo, que acabou por se impregnar na esmagadora maioria da população que vive no tecido urbano, com o apoio de um sistema de educação e ensino falido e o papel da grande parte das igrejas e seitas que foram coisificando os cidadãos, principalmente os de menos recursos intelectuais, conduziu-nos a um modus vivendi desértico, individualista, quase trágico. Que tentou, até há pouco tempo, destruir, apoucar e de preferência fazer desaparecer uma filosofia de vida muito própria dos cidadãos, nascida, crescida e consolidada no pós-independência, em função de termos vivido grande parte do nosso tempo num ambiente agressivo, pesado, de guerra, mas do qual nos fomos aprendendo a defender com o espírito muito prático do angolano comum. Que encontrou, durante parte destes anos, no humor, na ironia, na solidariedade, na divisão das dificuldades e num aparente (e só aparente) fechar de olhos) as defesas necessárias e essenciais para conseguir sobreviver a um ritmo que nos foi imposto e com o qual nunca tivemos nem temos nada a ver. É verdade que deixou marcas profundas que levarão anos a ser vencidas, apagadas ou, com alguma sorte, esquecidas, mas que de alguma forma nos transformaram negativamente a todos - bem, a quase todos, já que alguns se mantêm vivendo num país que só existe no seu desequilíbrio psicoemocional - e destruíram por completo um tecido social que ia sendo consertado à volta de valores essenciais à vida humana e a um sentido civilizacional que, na generalidade, com mais ou menos cultura, os cidadãos ganharam até meados dos anos 80.

O caldo suicida em que nos envolveram - na mesma proporção em que íamos percebendo que não havia a mínima preocupação em pensar políticas de desenvolvimento regional que evitassem a corrida desvairada para as grandes cidades, em particular Luanda - transformou-nos numa cópia quase pornográfica das sociedades de consumo, que, mesmo em decadência, têm defesas que nunca tivemos nem teremos tão cedo.

Como escreve magistralmente Eduardo Galeano, um núcleo muito restrito da nossa sociedade passou a viver ajoelhada ao "diz-me quanto consomes e dir-te-ei quanto vales". Acabaram por criar um fosso gigantesco entre essa meia dúzia de privilegiados e um país real cujos itens correspondentes ao Índice de Desenvolvimento Humano atingem níveis surreais. Um país cuja maioria da população vivia nos campos, cultivava para consumo, venda e troca de produtos e conseguia manter a sua auto-subsistência. Tornámo-nos, nas revistas da moda e nos cérebros minúsculos de quem engendrou esta contradição, pseudogigantes sem ter qualquer base real que fundamentasse esse "gigantismo", um bluff do tamanho do nosso país. Um exemplo magnífico: estão a deixar apodrecer propositadamente os grandes cinemas ao ar livre que Luanda tinha para nos enfiarem todos em shoppings envidraçados, para acalmar os nossos complexos de colonizados e copiar q.b. os europeus.

É esta a mistura explosiva em que vivemos, criada por um circuito fechado, cego, surdo e mudo que tomou conta do poder, esquizofrenicamente agarrado a festanças, chazinhos dançantes e a umas esmolas para os "pobrezinhos que Deus criou" que os levou a dividir o nosso país entre eles e nós. Os "escolhidos" e a ralé... Este quadro dramático vai levar tempo a ser invertido, mas há esforços claros para o fazer. O MPLA, que reúne a partir desta sexta-feira o seu comité central, devia, além das suas questões internas, ter um espaço de debate, de discussão, de aprofundamento destes problemas e esboçar uma estratégia de apoio ao seu Presidente no combate a este país de sonho (de pesadelo) que deixou de existir. E preparar-se para, em conjunto, enfrentar o país real e os seus múltiplos problemas.