O pós-Covid-19 adivinha-se sombrio no que à importação de alimentos diz respeito. Com o preço do petróleo em mínimos históricos, o país terá poucas divisas para importar alimentos. E, com a agricultura e indústria paradas nos países exportadores, os stocks internacionais estarão baixos e os preços a aumentar. Em suma, teremos menos dinheiro, para importar alimentos mais caros. Portanto, só nos resta um caminho: produzir internamente os alimentos de que necessitaremos, já que passar fome está fora de hipótese. É a razão pela qual a orientação que o ministro disse ter recebido do Presidente se reveste de uma importância fundamental.

À partida, o país tem condições naturais para que possamos retirar da terra e do mar os alimentos de que precisamos. Até para exportar. Temos uma das maiores áreas de terras agricultáveis, bacia hidrográfica e extensão marítima de África (e aqui não se trata da nossa famosa megalomania em que tudo o "nosso" é o maior). Do ponto de vista socioeconómico, todos os grupos etnolinguísticos são tradicionalmente agrícolas: pastores, pescadores ou uma mistura de cada ao mesmo tempo; o que quer dizer que têm conhecimento endógeno de como retirar alimentos do cultivo da terra, criação de gado e/ou pesca, sem grande necessidade de treinamento de base.

Temos três microclimas no país, pelo menos, tropical húmido ao Norte, tropical seco ao Sul e mediterrânico nos planaltos da Huíla e Malanje, o que dá numa variedade impressionante de produtos agrícolas que podemos produzir. E temos um tecido empresarial nos sectores agro-pecuário e pescas que já deu mostras suficientes que está à altura do desafio de alimentar o país, desde que tenha o necessário apoio do Estado. Do Ministério da Agricultura e Pescas, no caso. Tecnicamente é possível.

Se forem importadas agora sementes de ciclo curto de cereais (milho, massango e massambala), leguminosas (feijões) e tubérculos (mandioca, batatas rena e doce), poderemos ter as primeiras colheitas a partir de Outubro, desde que se invista na irrigação, tendo em conta o facto de estarmos agora no tempo seco. Temos condições de, numa primeira fase, atender à demanda interna, mais tarde até fornecer matéria-prima à indústria alimentar e, quem sabe mesmo, exportar a médio e longo prazos.

Mas, o sucesso disso passará por esse desafio: não recair apenas sobre os ombros do Ministério da Agricultura e Pescas. A cadeia de valores de uma produção intensiva de alimentos é tão extensa e diversificada que mereceria uma comissão interministerial igual à do Covid-19. Que concentre todos os projectos, centralize as respostas, harmonize, coordene os diferentes actores e, se necessário, discipline os desviantes. É que, nesta cadeia de valores, temos questões ligadas à posse da terra, à concessão de créditos de forma cirúrgica, efectiva e livre de burocracias desnecessárias, à criação ou revitalização de infra-estruturas no campo de cariz financeiro, comercial, logístico, à administração da justiça e à efectiva Administração do Estado. Exige, por isso, uma aliança estratégica com as estruturas de liderança local, tradicional, religiosa, cultural e outras que assegurem a participação plena das comunidades e, finalmente, um sistema de assistência de técnicas agrícolas, pecuárias e pesqueiras mais eficazes, como de organização de cooperativas e outros tipos de associativismo que permitam que as chamadas empresas agrícolas familiares possam lidar com a burocracia para aceder aos créditos, às melhores práticas produtivas, e possam pagar os referidos créditos e obterem os seus lucros.

Vejo uma tríplice vantagem no seguimento deste caminho: Financeira, pois o país poupa as divisas usadas na importação de alimentos e usa-as para alavancar outros sectores produtivos, como o turismo e a indústria extractiva, por exemplo; económica, pois o dinheiro investido dessa forma gera riqueza dos produtores nacionais, cria empregos (trabalho) no campo para a mão-de-obra não-qualificada; e social, pois combate simultaneamente a fome e a pobreza nas áreas rurais, reinicia o povoamento do campo com mão-de-obra qualificada com os benefícios colaterais que isso traz consigo, numa palavra, propicia o desenvolvimento rural.

E é com uma reflexão sobre o desenvolvimento rural que queremos terminar este artigo: o próprio termo desapareceu do léxico institucional desde que deixou de fazer parte da designação do então Ministério da Agricultura e Desenvolvimento Rural, em 2008. O seu braço executor - O Instituto de Desenvolvimento Agrário, que "herdou" a Missão de Extensão Rural do tempo colonial - foi perdendo, gradualmente, a sua vocação. As Estações de Desenvolvimento Rural nos municípios que eram os espaços onde se fazia a assistência técnica às associações de camponeses foram pouco a pouco se transformando em ruínas. Grandemente porque os extensionistas "emigraram" para professores, porque aí ganham melhor.

Tanto a experiência de outros países como a maioria dos "experts" da nossa praça nos avisam que dificilmente estaremos à altura do desafio da produção local de alimentos se não se adoptarmos uma estratégia dupla: Por um lado, potenciar, financiar e apoiar sem reservas o empresariado agro-pecuário e pesqueiro que vive e trabalha no campo; por outro, enquadrar as empresas familiares das comunidades, dando-lhes a assistência técnica necessária, para que esse enquadramento seja vantajoso também para o Estado. Ou seja, sem paternalismos, mas também sem abandoná-las a si mesmas, para que sejam capacitadas para decisões informadas em seu próprio benefício. Isso, é e só o Desenvolvimento Rural que nos pode facultar.