Em vez de abraçar um conceito de Segurança Nacional mais próximo do ideal democrático, com a inserção das várias dimensões de segurança, como, por exemplo, a segurança climática que pretende proteger as populações das possíveis catástrofes naturais que emergem das alterações climáticas, a segurança alimentar, também muito ligada às alterações climáticas, a segurança rodoviária que tem a ver com sinistralidade rodoviária, que já assumiu contornos catastróficos em Angola, a proposta de lei preferiu derivar unicamente para a dimensão securitária de segurança como é apanágio dos Estados autoritários. Mesmo a cibersegurança aparece nesta proposta de forma muito restrita, circunscrita aqueles aspectos que, de certo modo, estão relacionados com a dimensão securitária, sendo praticamente ignorados assuntos actuais da segurança do ciberespaço como sejam as fakenews e, agora, com a emergência da Inteligência Artificial, a problemática das deep fakes. Assim, a alínea i) do artigo 4.º em vez de pretender "A protecção do ciberespaço" que pressupõe um controlo alargado da internet, o que, pela natureza reticular deste espaço é, a priori, impossível, deveria antes propor-se a "Proteger os cidadãos, empresas e instituições nacionais dos riscos e ameaças do ciberespaço". Seria uma forma mais precisa de estabelecer as linhas de actuação e delinear a estratégia nacional de cibersegurança.
São três, a meu ver, os aspectos que deixam escapar a deriva autoritária que se pretende imprimir a Lei sobre a Segurança Nacional, a saber:
- Apesar de o Art. 5º, com a epígrafe "Princípios fundamentais da segurança nacional" na sua alínea e), estabelecer como um dos princípios fundamentais o "controlo e fiscalização", a proposta de lei em si é omissa quanto à forma como esta fiscalização e controlo devem ser executados, particularmente no que diz respeito aos Órgãos de Inteligência e Segurança do Estado. É importante aqui referir que o Art. 162.º da Constituição da República de Angola, com a epígrafe "Competências de controlo e fiscalização", no seu ponto 1, alínea a), confere à Assembleia Nacional a competência de "velar pela aplicação da Constituição e pela boa execução das leis. Assim, considerando que um dos objectivos da Segurança Nacional, segundo o Art. 4,º, alínea c), da proposta de lei é garantir de forma permanente "O Estado Democrático de Direito" ao passo que o Art. 5º, na sua alínea a), estabelece o "Princípio da dignidade humana que se refere ao respeito e defesa dos direitos, liberdades e garantias fundamentais da pessoa humana" e estes estão consagrados constitucionalmente, para além do princípio da legalidade (alínea b), Art. 5º), a sujeição à fiscalização destes órgãos pela Assembleia Nacional revela-se imprescindível, sendo esta omissão inaceitável. Na verdade, esta densa zona cinzenta explica a frequente actuação destes órgãos muito À margem da lei e da Constituição, o que é urgente corrigir. Se a proposta de lei não aporta subsídios sobre o modelo de fiscalização destes órgãos pela Assembleia Nacional, estamos perante uma omissão grave que penso ser deliberada para permitir a continuação da deriva em que estes órgãos se encontram.
- O disposto na alínea c) do ponto 3, que permite que sem mandado judicial as forças e serviços do Sistema de Segurança Nacional proibir a "difusão a partir de sistemas de radiocomunicações públicos ou privados, o isolamento electromagnético ou o barramento do serviço telefónico em determinados espaços; ao mesmo tempo a proposta de lei é omissa quanto as escutas telefónicas arbitrárias e espionagem nas redes, muitas vezes realizadas pelos serviços de segurança sem qualquer protecção judicial. Esta actuação dos serviços fere amiúde liberdades fundamentais garantidas constitucionalmente pelo que constituem um contundente atentado ao Estado Democrático de Direito que a proposta pretende que seja permanentemente garantido pelo Sistema Nacional de Segurança. Não haverá aqui uma clara contradição?
- O terceiro aspecto, onde "o lobo se desfaz da pele de cordeiro" é a disposição dos pontos 1 e 2 do Art. 40.º Diz expressamente o ponto 1 que "O funcionário, o agente administrativo das empresas públicas e privadas e outros têm o dever especial de comunicar aos sectores, instituições, órgãos e serviços do sistema de segurança nacional os factos que tomem conhecimento no exercício das suas funções ou por causa delas que constituem riscos e ameaças à segurança nacional, sem prejuízo do dever de denúncia obrigatória previsto no Código do Processo Penal". Aqui parece demasiado evidente o propósito de transformar todos os funcionários públicos e de empresas públicas e privadas numa rede poderosa de "bófias" bem posicionados estrategicamente e que podem ser penalizados caso se recusem a desempenhar este papel.
Porém, o problema fundamental desta proposta de lei não são estes aspectos que acabei de enunciar. O problema fundamental desta lei é estrutural e radica no Sistema do Partido-Estado que o MPLA instituiu em Angola fruto da sua longevidade no poder e que desvirtua a partida o Estado Democrático e de Direito. Uma das características deste sistema é a confusão que introduz no sistema entre os interesses nacionais e os interesses do Partido, prevalecendo em muitos casos mais estes do que os interesses nacionais. Fruto desta confusão todas as pessoas singulares e colectivas contrárias aos interesses do Partido são automaticamente catalogadas como contrárias como contrárias aos interesses nacionais, derivando daí comportamentos sectários que não abonam o Partido no poder porque não se compadecem com o Estado Democrático de Direito. As forças do Sistema Nacional de Segurança são presas fáceis deste sectarismo malévolo do Partido-Estado que as arrasta para acções sistemáticas contra os fundamentos do Estado Democrático e de Direito. Por isso, os serviços de inteligência e segurança do estado perdem mais tempo a perseguir líderes da oposição e jovens activistas políticos e sociais do que, por exemplo, a desenvolver acções tendentes a combater a corrupção que em grande medida compromete muito mais "...a promoção do desenvolvimento económico-social sustentável", definida como um dos objectivos da segurança nacional. A corrupção, pelos níveis que atingiu no País é, de longe, um problema de segurança nacional muito mais grave do que as ofensas eventualmente proferidas por entusiastas activistas políticos contra o Presidente da República, muitas vezes até, dentro dos limites permitidos pela liberdade de expressão que assim se vê reprimida.
Este problema estrutural é também responsável pela intromissão grosseira dos serviços de segurança nos processos eleitorais, favorecendo as fraudes eleitorais, massivas ou cirúrgicas que são o expediente para a manutenção longeva do MPLA no poder e a inviabilização da alternância democrática. Quanto mais tempo o MPLA se mantém no poder, mais o Partido-Estado se consolida como sistema e mais difícil se torna a afirmação do Estado Democrático de Direito, Portanto, para que o republicanismo e a democracia possam vingar em Angola é fundamental desmantelar o Sistema Partido-Estado e uma das formas de o fazer é descolar o Sistema de Segurança Nacional do Partido-Estado e colocá-lo de facto ao serviço do Estado angolano, garantindo efectivamente e de forma permanente o Estado Democrático de Direito com reza a alínea c) do Art. 4º da proposta de lei que estamos aqui a escalpelizar.
É por isso que considero oportunas as conclusões e recomendações da recente Conferência organizada pelo Governo-Sombra da UNITA sobre Geopolítica e Segurança Nacional entre as quais me permito destacar as seguintes:
- Que haja maior discernimento na identificação das ameaças próximas ou remotas para se evitarem "inventonas" engendradas nos laboratórios do grupo sectário do regime com fins alheios ao interesse nacional;
- Que as actividades das diversas áreas da comunidade de inteligência sejam escrutinadas e fiscalizadas pela Assembleia Nacional, para que os seus actos sejam transparentes e contribuam para o reforço e consolidação do Estado Democrático e de Direito.
- Que as Forças Armadas Angolanas sejam convertidas em forças republicanas e, em tempos de paz, levadas a assumir um papel relevante na componente social, na protecção civil e no combate às calamidades naturais, com a putativa criação de um Quarto Ramo.
Nesta Conferência também, os conferencistas notaram, com preocupação, que uma das maiores ameaças à segurança nacional reside, per si, "nas externalidades negativas que advêm das graves imperfeições e lacunas evidentes na longa transição do nosso Estado Democrático e de Direito, marcado pelo espectro do totalitarismo e pela corrupção". Essa Conferência, a meu ver, produziu valiosos contributos para as grandes questões atinentes à Segurança Nacional no presente contexto geopolítico, fenestrado de incertezas que ameaçam directamente o Estado Democrático e de Direito.
Penso, pois, que, se muitas das questões levantadas nesta Conferência fossem levadas em consideração na formulação desta proposta de lei sobre Segurança Nacional que estamos aqui a analisar, estaríamos mais próximos de uma lei que consagra um Sistema de Segurança Nacional efectivamente voltado para a defesa dos interesses nacionais e não para a defesa do partido-Estado.
*Secretário-Executivo do Governo-Sombra da UNITA