Esta nova abordagem do FMI e do BM a África, instituições que sempre impuseram aos países africanos condições mais duras de austeridade nos seus programas de apoio financeiro que aos que têm com países europeus, e que coincide com uma nova importância dada ao continente pelos Estados Unidos, depois de décadas de "ausência", demonstra a centralidade que África ganhou no quadro da disputa entre o "sul global" e o "ocidente alargado".

Para os EUA e os seus aliados, integrados no "ocidente alargado", que compreende a América do Norte, a Europa Ocidental e os asiáticos ocidentalizados, Japão e Coreia do Sul, bem como Austrália e Nova Zelândia, em causa está não perder a hegemonia global garantida por uma "ordem mundial baseada em regras" saída da Grande Guerra, que terminou em 1945.

Essa hegemonia permitiu, nestas mais de sete décadas, o enriquecimento e o desenvolvimento dos países do Hemisfério Norte, mesmo ali existindo variadas excepções, face ao Sul Global, África, Ásia e América Latina, que até aqui tem sido visto pouco além de uma fonte inesgotável de recursos naturais e subdesenvolvimento, o 3º mundo onde é preciso evitar que epidemais graves cresçam sem controlo.

Porém, nos últimos anos, o eixo Pequim-Moscovo, num alinhamento partilhado pela Índia, África do Sul e Brasil, no seio dos BRICS, iniciou uma contra-ofensiva que Rússia e China anunciaram como tendo o objectivo de criar uma nova ordem mundial baseada não na hegemonia dos EUA mas em parcerias entre iguais e na cooperação sem domínio entre os distintos componentes do puzzle mundial.

Face a esta declaração de vontade de reduzir a importância ocidental na mecânica das relações diplomáticas, comerciais, económicas e culturais, assistiu-se nestes últimos anos a uma alteração da estratégia dos EUA e da União Europeia, bem como dos pilares que garantiram a hegemonia ocidental durante tanto tempo, com destaque para o FMI e o Banco Mundial, com um ruidoso "regresso" a África, desde logo pelos EUA, com Joe Biden a reerguer as cimeiras EUA-África, e a enviar os membros do seu Governo para estes lados do mundo e o próprio a anunciar um inédito périplo africano até ao fim de 2023, ou Bruxelas a anunciar grandes investimentos no continente...

Com a guerra na Ucrânia - ainda é cedo para perceber a mecânica do conflito renascido no Médio Oriente -, criou-se a ideia de que ali se estava disputar qual dos lados saíria vencedor da contenda global, se o sul global, encarnado pela Rússia, se a Ucrânia, o pivot do ocidente alargado neste "ring", o que foi ainda mais evidenciado com a disputa de apoios entre os países do "sul" por Washington aquando das votações de resoluções condenatórias de Moscovo pela Assembleia-Geral da ONU, nas quais Moscovo vergou mas não partiu graças a um número considerável de países do sul global que ou se abstiveram ou votaram contra o sentido pretendido pelos Estados Unidos e os seus aliados europeus.

Depois dos primeiros embates, há uma realidade que já ganhou: nada ficará como dantes, com a eminente entrada de novos países para o Conselho de Segurança em lugares permanentes, esperando-se que a Índia, o Brasil e um africano, podendo ser mesmo a União Africana (UA), cheguem para mudar as regras impostas até aqui pela maioria ocidental neste órgão da ONU, os EUA, a França e o Reino Unido, face à Rússia e a China.

E são cada vez mais aqueles que defendem a entrada da UA no G20, por exemplo, colocando África no lugar da dama mais pretendida, o que é um jogo que se o continente souber jogar pode traduzir-se em ganhos de posição e decisão para o futuro incalculáveis, permitindo galgar etapas no seu atávico subdesenvolvimento que não pode ser só responsabilidade dos 500 anos de colonialismo.

Esta escolha de Marrocos para organizar o encontro anual do FMI e do BM não é por acaso e faz todo o sentido neste "grand jeu", ainda mais quando a prosperidade do continente nunca foi apontada como uma prioridade ocidental.

Alias, recentemente o FMI voltou a vir a público com um relatório onde preconiza mais austeridade e renegociações das dívidas por parte da maioria dos países africanos, com a Human Rights Watch a sair a terreiro logo a seguir para lembrar que estas soluções quadradas do FMI nunca deram resultado em África, pelo contrário, são parte fundamental das razões que prendem o continente ao atraso económico e social.

Mas nunca é tarde para mudar de "chip" e, agora, neste encontro em Marraquexe, a directora geral do FMI, Kristalina Georgieva, vem enfatizar que o mundo só pode ter um "próspero século XXI se África for um continente próspero", algo não só raro nos pronunciamentos de Breton Woods, como, de facto, nunca tinha acontecido com esta sonoridade.

É mesmo a primeira vez que estas duas poderosas instituições financeiras aportam em África para uma Cimeira desta importância em mais de meio século para analisar e encontrar soluções para garantir a continuidade do crescimento e estabilidade planetária em momentos dramáticos de guerras em curso ou emergentes, a desigualdade e a urgência de combater as alterações climáticas.

O fundamental deste encontro de alto nível não vai ser que medidas serão encontradas para resolver os problemas da Humanidade, ou tão pouco que trouxeram na bagagem para oferecer de presente aos africanos os lideres do FMI, Kristalina Georgieva, e do BM, Ajay Banga, o mais relevante para o continente africano vai ser o que os seus lideres vão colocar na folha das prioridades a apresentar a estas duas férreas instituições.

E uma boa ideia, como é, alias, cada vez mais reconhecido em todo o mundo e por cada vez mais organizações internacionais, basta considerar a análise recente da HRW, é dizer ao FMI e ao Banco Mundial que as suas receitas de austeridade em cima de austeridade não mais serve, e há que acabar com a discrepante política de juros entre os países do sul e do norte, ou seja, entre os, eufemisticamente, "em desenvolvimento", a quem são exigidas dramáticas reformas para as quais não estão infra-estruturados, e os ricos, que beneficiam de regalias que assentam como uma luva nas suas economias agilizadas em décadas de vantagens artificialmente criadas.

E Ajay Banga e Kristaina Georgueva devem ainda ouvir dos africanos que acabou o tempo de obrigar os governos do continente, sob ameaça de incumprimentos puníveis severamente, a terem de fazer escolhas de morte, entre não deixar esboroar os seus já fragilizados sistemas sociais para acudir aos compromissos desonestos das dívidas, quantas vezes artificialmente criados.

E, já agora, com África no "top of the tops" das regiões do mundo mais devastadas pelos efeitos das alterações climáticas para as quais contribuíram apenas com uns risíveis 3%, seria bom que fosse agora criado um mecanismo global de compensação a custos reduzidos para que o continente possa estar no pelotão da frente da revolução industrial verde em curso.