Não foi pensado, ou pelo menos não parece que o tenha sido, mas as cinco intervenções iniciais de Cyril Ramaphosa, o anfitrião da já histórica Cimeira dos BRICS, de Xi Jinping, que, ou acometido de doença súbita ou para dar um recado mais afiado sobre qualquer desagrado de Pequim ainda por conhecer, mandou o seu ministro do Comércio falar por si, de Vladimir Putin, que optou pela mais segura videoconferência a partir de Moscovo, do simpático e desassombrado brasileiro Lula da Silva, de Narendra Modi, o circunspecto líder da cada vez mais incandescente Índia, deram uma lição de geoeconomia e geoestratégia ao mundo que lhes seguiu o movimento dos lábios sem pestanejar.

O quinteto maravilha explicou, quase garantido que sem essa intenção previamente delineada, o que é o Sul Global e o Ocidente Alargado em forma de justificação para a exigência de acção em várias frentes, porque já não há tempo a perder para derrubar as vantagens artificiais criadas desde a II Guerra Mundial pelos EUA e europeus ocidentais.

O Sul Global pode estar no Hemisfério Norte porque a sua geografia é económica e social, sendo as suas fronteiras a pobreza e o subdesenvolvimento, sendo estes cinco países os seus porta-vozes, enquanto o Ocidente Alargado são os "amigos" dos Estados Unidos e dos países ricos do oeste da Europa, que podem estar a sul do Equador, porque a sua definição tem como margens o seu PIB ensolarado e o desenvolvimento robusto face a uma vizinhança que se deita e acorda com fome e, quantas vezes, doente.

E é para derrubar este estado de coisas inamovível porque mexer com esta realidade não é do interesse dos mais ricos, que vivem fechados no seu conforto, excepto quando precisam de ir ao planeta subdesenvolvido buscar as matérias-primas com que alimentam a sua indústria fulgurante e lhes garante a riqueza com que o Sul Global apenas sonha, em termos gerais, que os BRICS nasceram e, agora, como se percebeu das intervenções do "quinteto", se preparam para alargar, mesmo que moderadamente, e combater através da criação de uma moeda própria que permita diluir a importância do dólar norte-americano, que irrita especialmente chineses, russos e brasileiros, mas ao qual indianos e sul-africanos também não desenham tirar alguma relevância.

Mas se o alargamento dos BRICS, para a fórmula de BRICS +, como sucedeu com a OPEP, que acrescentou um "+" com a agregação da Rússia e de outros produtores/exportadores até ai independentes, e a criação da moeda com o cunho da organização, parece ser de fácil digestão, há um tema que já começou a fazer caminho e no qual todos estão de acordo e pode ser a primeira alfinetada relevante no domínio ocidental do Planeta Terra, até porque isso já levou o Presidente dos EUA, Joe Biden, a admitir que não há outro caminho: a reforça das instituições internacionais.

A ONU está "condenada" a acomodar mais, pelo menos, três países no seu Conselho de Segurança, de forma a fazer deste fundamental órgão regente do mundo menos elitista e mais ecléctico tanto na geografia como nos costumes e cultura, e o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial (BM) não podem continuar a ser, pelo menos os BRICS "+" tudo farão para acabar com esse poder, o "chicote" com que o ocidente controla e verga as vontades dos emergentes em apertos económicos quantas vezes gerados intencionalmente, como o defendeu o Presidente sul-africano de forma clara.

O que fica saliente do primeiro dos três dias da 15ª Cimeira dos BRICS, que começou na terça-feira, 22, e termina na quinta-feira, 24, é que a ordem mundial baseada em regras, criada pelos EUA e aliados no pós II Guerra Mundial, que serve especialmente os interesses do tal Ocidente Alargado, que controla as suas principais instituições, é que, se não surgirem fricções inesperadas entre este quinteto, já nada poderá travar o surgimento de uma nova ordem, desta feita, como o defendem mais afincadamente a China e a Rússia, embora a Índia e o Brasil também já tenham deixado claro o seu interesse nessa caminho, afirmada pela cooperação entre iguais e com o foco no desenvolvimento sustentado de todos por igual.

As palavras do "quinteto maravilha"

Cyril Ramaphosa, logo a abrir os trabalhos, foi claro ao dizer que é "absolutamente incontornável" a reforma do sistema financeiro global, para o qual, disse, o recém-criado Novo Banco de Desenvolvimento (NBD), criado pelos BRICS e que tem a ex-Presidente do Brasil, Dilma Rousseff, como líder, pode dar um contributo importante.

E avisou que a crescente relevância dos BRICS - que no agregado já são 40% da população mundial, 16% do comércio planetário e 26% do PIB global - não tem limite e já são "uma plataforma na arquitectura da geopolítica mundial" que "não pode ser ignorada" por ninguém, deixando ainda em cima da mesa a garantia de que será dada uma atenção especial aos países que já demonstraram vontade de entrar neste clube do futuro.

Por sua vez, o Presidente da China, Xi Jinping, aproveitou este palco para apontar o "verbo" aos EUA e aos seus aliados ocidentais, fazendo questão de dizer que "o mundo não está interessado numa nova guerra fria", numa referência evidente às crescentes tensões entre Washington e Pequim, seja no campo da disputa económica e comercial, seja no que diz respeito a Taiwan, a ilha rebelde que a China quer ver de volta a "casa".

O líder chinês sublinhou que o que a Humanidade quer e precisa é um "mundo sem conflitos, pacífico e cooperante" para vencer os seus grandes desafios, desde logo os ambientais e climáticos, do desenvolvimento sem barreiras e inclusivo, ideias que o líder chinês repetiu já esta quarta-feira, 23, na Cimeira de líderes mais importante, onde pediu expressamente ao Ocidente que esqueça a "mentalidade da guerra fria" que tantos problemas tem criado no mundo.

Com as suas palavras a serem proferidas pelo seu ministro do Comércio, Wang Wentao, Jinping não deixou, todavia, de desferir uma alfinetada no Ocidente Alargado, ao dizer que é hoje evidente que muitos países apenas conheceram o desenvolvimento com o fim do colonialismo, aos quais prometeu uma China cooperante e empenhada em criar laços fortes e de vantagens mútuas sem subterfúgios, deixando um recado claro: "A China não tem pretensões nem isso está no seu ADN de ter uma posição hegemónica" porque "está do lado certo da História".

"mais cooperação" entre os BRICS de hoje e os BRICS + que são já quase uma certeza, foi a promessa feita pelo Presidente russo, Vladimir Putin, que foi ouvido em Joanesburgo a partir de Moscovo numa tela gigante do Centro de Convenções de Sandton, na periferia kais endinheirada de Joanesburgo.

E da Rússia, os seus aliados, nos BRICS e entre o resto do mundo que mantém laços de amizade e cooperação com Moscovo, Putin voltou a frisar que tem as portas dos gigantescos armazéns de alimentos e as torneiras da infindável energia russa abertas, como, de resto, bem o sabem a Índia e a China, que têm, com mais expressão desde o início da guerra na Ucrânia, na Federação um fornecedor empenhado e em conta de crude e gás natural ilimitados.

E propôs em concreto que os BRICS devem erguer uma plataforma de cooperação organizada para garantir o fornecimento "com confiança e sem interrupções" de recursos diversificados, dos alimentares, aos fertilizantes, passando pela energia, para os mercados globais.

O Presidente russo afirmou ainda que o processo da "desdolarização" da economia mundial é irreversível, deixando a sua garantia de que esse caminho já está a ser traçado de "uma forma que nada o poderá travar".

Com estas palavras, Putin reafirmou perante o mundo o seu objectivo maior de tirar aos EUA, o grande financiador da Ucrânia para manter o ímpeto na guerra com a Rússia, a sua principal ferramenta de controlo hegemónico da economia global, que é o dólar, a ainda, moeda franca mais relevante nas trocas comerciais planetárias.

Sem referências especiais à guerra na Ucrânia, que já vai para o seu 18º mês, excepto para mostrar mais uma vez o seu descontentamento com as sanções a que o seu país está sujeito, que perfilou como contraponto ao que entende ser a necessidade de usar a plataforma BRICS para garantir a protecção a todos aqueles que possam estar na posição de alvo da agressão ocidental, garantindo e fortalecendo a sua "segurança alimentar, energética global e um combate firme à pobreza e à fome".

Todavia não deixou de usar este palco para dar uma renovada alfinetada no seu homólogo ucraniano, Volodymyr Zelensky, que acusa há meses a Rússia de usar os cereais como arma de guerra, renovando Putin a promessa de que a Rússia está em condições de substituir todos os grãos ucranianos nos mercados globais e manter as doações, sem custos, para os países mais desfavorecidos, na qualidade de ajuda humanitária desinteressada.

O chefe do Kremlin sublinhou ainda que Moscovo está dispon+ivel para retomar o acordo dos cereais do Mar Negro, interrompido em Julho, "desde que as condições iniciais sejam cumpridas" acusando de novo o Ocidente de dificultar o processo com intenção e dolo.

O líder indiano, Narendra Modi, não deixou passar a oportunidade para puxar dos galões e lembrou em Joanesburgo que "apesar da volatilidade na economia mundial, a Índia é a economia que mais cresce", sem esquecer a vertente ambiental, que é uma das "cruzes" do seu país, que ostenta o tenebroso estatuto de ter as cidades mais poluídas do mundo.

Considerou que o surgimento dos BRICS for "uma luz de esperança" para a economia mundial após a crise de 2008, e que não há nada que faça temer que essa luz se manterá no futuro, dando o exemplo do seu país, que "é entre as grandes economias aquela que mais cresce e que em breve valerá cinco biliões de dólares".

Coube ao brasileiro Lula da Silva referir a questão da "moeda" e o alargamento dos BRICS, defendendo a "unidade de conta de referência para o comércio" do bloco, "que não substituirá nossas moedas nacionais"

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva, citado pela Lusa, defendeu, nesta terça-feira, que os BRICS seriam mais relevantes com a entrada de novos membros, e voltou a defender a adopção de uma moeda comum para o comércio entre os países do grupo.

No primeiro discurso na África do Sul no âmbito da Cimeira dos BRICS, o presidente Lula da Silva atacou os países ricos e mandou um recado velado aos europeus. "Não podemos aceitar um neocolonialismo verde que impõe barreiras comerciais e medidas discriminatórias, sob o pretexto de proteger o meio ambiente".

O alerta foi interpretado como um recado para a União Europeia, que vem aplicando novas leis nas quais produtos de países em desenvolvimento poderiam ser vetados ou sobretaxados se não cumprirem determinações ambientais.

O governo brasileiro já deixou claro para a Europa que poderá inclusive questionar legalmente as normas adoptadas pelo bloco e insiste que a "punição" não pode ser a forma de lidar com o meio ambiente entre países.