Kiev e os seus aliados ocidentais apontam as baterias acusatórias a Moscovo, falando em crime de guerra, monstruosidade ambiental e demonstração de selvajaria por não se importarem com os efeitos nas populações afectadas.

O Kremlin responde acusando os ucranianos de terem feito implodir a infra-estrutura para desviar as atenções do fracasso da contra-ofensiva e ainda de avisarem há meses que o iriam fazer, acrescentando que são os ucranianas quem tem mais a ganhar ao provocar esta catástrofe ambiental apenas para ganharem tempo face à pressão ocidental para fazerem avançar as suas unidades contra as posições defensivas de Moscovo.

Entretanto, os russos introduziram uma nova versão para este desastre. Acusam a Ucrânia de ter aberto as comportas nas barragens a montante - Kakhovka e a 6ª e última antes da foz do Rio Dniepre - para esforçar a estrutura, derrubando-a com a força das águas aproveitando a falta de manutenção por causa da guerra, numa estrutura com quase 70 anos e problemas de envelhecimento no betão.

Entre este vai e vem de acusações, pelo menos cinco corpos foram já retirados das águas que inundaram a margem sul do Rio Dniepre, na região de Kherson, controlada pelos russos, quase quatro dias após a destruição parcial da barragem de Nova Kakhovka, mas não há registo de vítimas na margem norte, onde mandam os ucranianos.

Isto, quando os media internacionais começam a ser inundados de imagens de satélite com o antes e o depois da destruição parcial da barragem, mostrando áreas com largas centenas de quilómetros quadrados debaixo de água, tanto na margem sul, a mais afectada, e controlada pela Rússia, como na margem norte, onde os ucranianos estão posicionados, nalguns locais só se percebendo os telhados das casas, demonstrando que a situação é muito mais grave do que se supunha nas primeiras horas após o colapso parcial da represa.

A Barragem de Kakhovka, acabada de construir em 1955, na então União Soviética, com o objectivo de permitir, entre outras funcionalidades, a produção de energia eléctrica, irrigar milhares de hectares de culturas, fornecer água doce a toda Península da Crimeia e tornar navegável o curso de água para norte, sob um manto de água de 18,2 km3 com uma extensão superior a alguns dos grandes lagos europeus, tem um muro de retenção de mais de 3 kms de extensão e 30 m de altura.

Apesar de a infra-estrutura só ter sido danificada na superfície, mantendo intacta a parede estrutural de quase 30 m, acabou por lançar um caudal de água para jusante que cobriu mais de 600 kms2 de superfície, deixando dezenas de aldeias e vilas inundadas, milhares de hectares de culturas destruídas e uma situação de grande melindre na segurança da Central Nuclear de Zaporizhia, cuja água para arrefecimento dos reactores advém da albufeira, e a prazo pode sentir problemas, e ainda no canal de abastecimento da Crimeia, que, também a prazo, pode ser atingido.

Segundo as informações disponibilizadas ela administração russa da margem sul do Rio Dniepre, perto de 70% das áreas inundadas são territórios anexados pela Rússia, de onde quase 5.000 pessoas tiveram se ser evacuadas com o avanço das águas que já atingiram uma altura de 12 metros em alguns locais, embora tenham, quase quatro dias depois da destruição parcial da barragem, já começado a recuar.

As autoridades locais estimam que as inundações vão manter-se por pelo menos mais duas semanas, sendo que os efeitos nefastos destas se vão sentir durante meses, especialmente nos terrenos agrícolas e nas localidades, onde milhares de casas ficaram submersas, além das centenas de animais domésticos que morreram.

Quase ao mesmo tempo que as águas avançavam sobre as terras a jusante da barragem, tanto russos como ucranianos lançavam as suas unidades especiais de combate comunicacional sobre os media para procurarem convencer da responsabilidade do outro para esta tragédia humana e ambiental.

Putin e Zelensky

O Presidente russo, Vladimir Putin, sobre esta explosão, como se esperava, veio dizer que se tratou de "um acto bárbaro" que confirma a vontade de Kiev e dos seus aliados ocidentais para uma escalada perigosa no conflito.

Numa conversa com o Presidente turco, recentemente eleito para um nvo mandato, Recep Erdogan, Putin deu como exemplo para a vontade ocidental de escalar o conflito a destruição da barragem e o "catástrofe ecológica e humanitária que se seguiu".

Considerou mesmo que se tratou de "crime de guerra" perpetrado por Kiev através de "métodos terroristas" apoiados pelos seus aliados ocidentais.

E do lado ucraniano foi mesmo para o local o seu mais importante activo mediático, o Presidente Volodymyr Zelensky, que visitou, quase em segredo, algumas das áreas mais afectadas, falando com moradores e prometendo o empenho das equipas de socorro e das próprias unidades militares na zona para apoiar as populações, anunciado que também dos países aliados, como a Alemanha, estão a preparar o envio de toneladas de apoio, entre tendas, medicamentos e alimentos...

Provavelmente só com o decorrer do tempo se poderá saber quem foi, efectivamente, que destruiu a infra-estrutura, mas há uma terceira possibilidade que começa a emergir das águas: a de que nem russos nem ucranianos mandaram a barragem abaixo, tratando-se possivelmente de um colapso provocado pela falta de manutenção ao longo dos 15 meses de guerra, ainda por cima numa estrutura em betão montada há quase 70 anos, o que obriga a cuidados permanentes e intensos.

Tropas ocidentais a caminho da guerra?

O aviso foi feito pelo antigo secretário-geral da NATO, entre 2009 e 2014 o dinamarquês Anders Rasmussen, que é actualmente parte interessada no conflito enquanto um dos conselheiros externos do Presidente Zelensky: se os EUA e os seus aliados não forem capazes de garantir a segurança a Kiev, alguns países europeus, como a Polónia e os países bálticos, Lituânia, Letónia e Estónia, ver-se-ão obrigados a enviar tropas para a Ucrânia.

As declarações de Rasmussen surgem que nem uma bimba nos media de todo o mundo, porque se sabe sem margem para dúvida que as chamadas "botas no terreno" de tropas ocidentais seria chegar o rastilho a arder ao barril de pólvora e o início de um inimaginável confronto entre a Federação Russa e a NATO liderada pelos EUA.

Isto é de tal modo perigoso que as leituras dividem-se, sendo que as duas principais, ouvindo os diversos analistas, que 1) - existe um claro desespero em Kiev e entre os seus aliados ocidentais e estas palavras de Rasmussen visam influenciar os membros mais cépticos da NATO para decidirem dar passos decisivos na adesão da Ucrânia à organização militar ocidental já na Cimeira de Vilnius, a capital da Lituânia, em Julho, ou, 2) desviar o foco da guerra das trincheiras para o atrito diplomático e negocial, revelando assim alguma flexibilidade de Kiev, ao mesmo tempo que retira da equação a ofensiva diplomática chinesa.

Outra possibilidade menos considerada é que o antigo chefe da NATO Anders Rasmussen aparece aqui a assumir um papel relevante face à fragilidade liderante do actual líder da NATO, o norueguês Jens Stoltenberg, que se tem revelado pouco mais que uma correia de transmissão da vontade de Washington para os seus aliados europeus e uma voz de ruidoso apoio continuado à guerra até uma derrota total da Rússia, o que é já visto como irreal na generalidade das chancelarias ocidentais.

Face à impossibilidade estatutária de uma adesão à NATO de um país em guerra, como o actual secretário-geral da NATO, Stoltenberg, tem sublinhado amiúde, o que Anders Rasmussen vem agora propor, mesmo que não o diga com todas as letras, é que a Ucrânia deve obter garantias de segurança dos aliados na Cimeira de Vilnius, nomeadamente um calendário concreto de adesão plena, o que é o mesmo que dizer, desenhar um calendário efectivo para o fim do conflito.

As palavras de Rasmussen, citado pelo britânico The Guardian, foram: "Se a NATO não está em condições de criar um consenso para um calendário concreto para a Ucrânia, então estamos perante a possibilidade concreta de que alguns países, individualmente, poderão passar à acção".

E disse ainda: "Nós sabemos que a Polónia está muito empenhada em providenciar apoio concreto à Ucrânia. E eu não excluo a possibilidade de que Varsóvia se venha a envolver de forma mais forte no conflito, podendo ser seguida pelos países bálticos, incluindo neste desenvolvimento o envio de forças militares para a frente de batalha".

"Estou convencido que será isso que vai acontecer se a Cimeira de Vilnius não proporcionar um calendário claro e concreto para a adesão da Ucrânia", acrescentou, sabendo muito bem o antigo chefe da NATO e actual assessor de Zelensky que a adesão da Ucrânia à NATO é a linha vermelha traçada pela Rússia a traço mais grosso entre todas as linhas vermelhas existentes, incluindo a questão da chegada de tropas ocidentais, oficialmente, ao conflito, porque elas já lá estão aos milhares, mas na condição de mercenários.

Consequências

Apesar de os media ocidentais terem retirado o assunto da contra-ofensiva das suas primeiras páginas e ecrãs, o analista militar major general Carlos Branco nota que as forças ucranianas não pararam as manobras e estão a tentar furar as linhas defensivas a sul, na direcção de Melitopol, para procurar chegar ao Mar Negro.

O analista considera ainda que os avanços na zona de Bakhmut foram manobras de distracção para desfocar a atenção das chefias russas do sul, onde está, efectivamente, o interesse principal e o foco da contra-ofensiva de Kiev.

Aparentemente, mesmo sem que os media a isso se refiram, todas as tentativas ucranianas estão a ser travadas pelos russos.

O militar nota ainda que se esta ofensiva ucraniana não tiver sucesso, os russos serão tentados a lançar, por sua, uma noa ofensiva em direcção a oeste, o que colocaria tudo num novo e mais perigoso plano.

E explicou: se tal suceder e os países fronteiriços da Ucrânia, como a Polónia ou a Hungria, com fortes comunidades culturais e linguísticas no oeste ucraniano, serão, por sua, vez, tentados a avançar, tomando territórios ucranianos sob a justificação de protecção das suas minorias.

Esta entrada de forças europeias não significaria que a NATO estaria no conflito, mas é já claro que daria um novo e muito perigoso avanço para um patamar ainda não visto neste conflito nem sequer na Europa desde a II Guerra Mundial.