Explosões em Kiev tem sido a norma ao longo dos meses de guerra, mais ou menos intensas conforme os russos usam drones ou misseis e a qualidade destes, se são de cruzeiro ou os hipersónicos Kinzhal, bastante mais difíceis de anular através das baterias antiaéreas, mas em Moscovo é raro a Ucrânia conseguir fazer chegar os seus drones "suicidas", o que faz desta noite de segunda para hoje, terça-feira, 30 de Maio, um dia "anormal" nestes 15 meses de combates.

Os ataques directos e repetidos às capitais são por si mesmo uma escalada na guerra, porque é nestas que se encontram os centros de poder e podem mesmo visar as lideranças, como, na verdade, em Kiev já se admitiu oficialmente que assassinar o Presidente Vladimir Putin é um objectivo, o que ficou demonstrado com os drones lançados sobre o Kremlin no início de Maio - foram abatidos dois pelas antiaéreas que protegem o espaço nevrálgico na capital russa - e que os Estados Unidos já admitiram terem sido os ucranianos a enviá-los.

Ao mesmo tempo, embora com centenas de drones e misseis disparados contra Kiev pelos russos, até hoje nenhum visou os edifícios da Presidência ou do Parlamento (Rada) ucranianos, em Moscovo já foi afirmado publicamente que matar o Presidente Volodymyr Zelensky não é um objectivo da Rússia.

A escalada é inevitável

Mas não é só nesta mudança de estratégia de Kiev, visando alvos no interior da Federação Russa, seja por drones de longo alcance, seja através de grupos de sabotadores, visando especialmente linhas de caminho-de-ferro, comandos enviados para assassinar figuras públicas próximas do Kremlin, ou batalhões que penetram as áreas de fronteira, que se percebe uma escalada na intensidade da guerra.

A Ucrânia prepara-se para, finalmente, obter dos aliados ocidentais os muito esperados aviões de guerra norte-americanos F-16, que o chefe da diplomacia da União Europeia, Joseph Borrell, acaba de admitir que vão ser enviados muito em breve.

Mas também os misseis Tauros, alemães, de longo alcance, mais de 450 kms, vão começar a chegar a Kiev nos próximos dias ou semanas, o que permitirá aos ucranianos atacarem directamente Moscovo com um muito maior poder explosivo.

Face a esta subida de degraus na capacidade militar fornecida pelos países da NATO à Ucrânia, a reacção de Moscovo tem sido, repetidamente, a mesma, como sucedeu com a chegada ao campo de batalha dos carros de combate pesados Leopard ou Chalenger, dos misseis Storm Shadow britânicos, com alcance de 250 kms ou dos sistemas Patriot, e, ainda antes destes, o canhões M777...

"É uma escalada muito perigosa e insensata por parte dos países ocidentais, mas a Federação Russa vai saber responder", avisou o ministro das Relações Exteriores, Sergei Lavrov, a partir do Quénia, onde está em mais um périplo africano, acrescentando que este reforço das armas fornecidas pelos países ocidentais a Kiev em nada irá alterar o curso do conflito, "apenas prolongar o sofrimento do povo ucraniano".

Contra-corrente

Há outro indicador que este recrudescer da intensidade da guerra, num momento em que se espera que a muito falada contra-ofensiva ucraniana, está a provocar, que é na redução quase a zero dos esforços internacionais diplomáticos para diluir a agressividade e conduzir os combates das trincheiras para a mesa das negociações.

Isso mesmo parece estar a acontecer no rescaldo do périplo realizado pelo enviado especial da China, LI Hui, um antigo e experiente diplomata chinês, que esteve em Kiev, Paris, Berlim, sede da União Europeia, em Bruxelas, Varsóvia(Polónia) e Moscovo, para procurar erguer um novo mapa para conduzir ao "X" da paz os contendores, que, como se vê, mostram pouca vontade para iniciar essa caminhada.

Alias, ao mesmo tempo que ainda ressoam nos corredores das capitais europeias os passos de Li Hui, em Kiev, Mykhailo Podolyak, um dos principais assessores de Zelensky, deixava um aviso a Moscovo: depois de ganhar a guerra, a Ucrânia vai querer criar uma zona desmilitarizada no interior da Rússia com 100 quilómetros, o que é mais uma clara procura de inviabilizar qualquer esforço para terminar com o conflito na mesa das negociações.

Igualmente em consonância com esta postura de Podolyak, o Presidente Zelensky veio, no seu último vídeo, dizer que já foram tomadas as decisões para dar início à contra-ofensiva, sublinhando que tudo está pronto, faltando apenas dizer o momento em que as forças ucranianas avançarão sobre as posições fortificadas da Rússia ao longo dos quase 1.200 kms de linha da frente.

Zelensky está claramente pressionado pelos aliados ocidentais para lançar a contra-ofensiva, desde logo pelo secretário da NATO, Jens Stoltenberg, que avisou Kiev que deve avançar porque já não tem desculpa a partir do momento em que já recebeu mais de 98% do armamento que pediu para o efeito, ou pelas chefias da União Europeia, cada vez mais impacientes para verem no terreno a intensificação das batalhas que dizem que vão levar à derrota total da Rússia.

"Desinformação Made in USA"

O mesmo, porém, não pensa a China, que, depois de concluído o tour de Li Hui, a soma dos resultados obtidos nas diferentes capitais dá como resultado que a China é vista como tendo um papel importante na promoção da paz e mostrando uma mudança relevante no olhar sobre esta crise, assinalou o Global Times, um jornal em língua inglesa gerido pelo Partido Comunista da China.

No entanto, este "tour" ficou manchado por um episódio que a China, ainda através do Global Times, considera ser mais um episódio da "desinformação americana", quando os media ocidentais, logo após a saída de Li Hui de Moscovo, a últipa paragem desta viagem diplomática, divulgaram que este tinha proposto a Kiev aceitar um acordo de paz cedendo os territórios anexados pelos russos em troca de vantagens comerciais e outros apoios nos capítulos subsequentes, como a reconstrução do país.

Esta informação foi divulgada pelo Wall Street Journal mas desmentida pelo próprio ministro dos Negócios Estrangeiros ucraniano, Dmitri Kuleba, que procurou desmontar a informação ali veiculada, tendo os media chineses citado o porta voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros chinês, Mao Ning, a dizer que "em lado nenhum se ouviu que Li tenha feito uma proposta com esse conteúdo".

Este episódio veio reforçar o já evidente mal-estar diplomático entre Pequim e Washington, que, embora não tenha sido usado como argumento, coincide com a recusa por parte da China de aceitar um encontro entre o seu ministro da Defesa, Li Shangfu, e o secretário da Defesa norte-americano, Lloyd Austin, em Singapura, para discutir questões de interesse comum e de âmbito militar, quando a tensão belicista aumenta a olhos vistos em vários pontos do mundo mas em especial no Estreito de Taiwan.

Face a este contexto, onde todas as tentativas de estabelecer um roteiro para a paz no leste europeu são desfeitas através de declarações ou iniciativas ocidentais, especialmente com origem na União Europeia, em Londres ou em Washington, como é o caso das tentativas da China, agora, mas antes da Turquia e do Brasil, ou ainda da União Africana, alguns analistas admitem agora, como o major general Agostinho Costa, ouvido na CNN Portugal, a contra-ofensiva ucraniana deverá mesmo ter lugar e só depois as partes estarão em condições, face aos resultados, para se sentarem à mesa e negociarem uma saída o mais airosa possível face às condições no terreno das batalhas.

Regras negociais ditadas nas trincheiras

Enquanto isso, Kiev mantém como único caminho para a paz a recuperação de todos os territórios ocupados pelos russos, incluindo a Crimeia, anexada em 2014, e Kherson, Zaporizhia, Donetsk e Lugansk, enquanto Moscovo só admite falar em cessar-fogo quando a Ucrânia aceitar a nova realidade da Federação Russa inseparável dos seus novos territórios a oeste, até há pouco tempo parte da Ucrânia.

Como Joseph Borrell, o chefe da diplomacia europeia, que, curiosamente, tem sido das vozes que mais defendem a continuidade deste conflito, deixava entender na segunda-feira, adivinha-se "um Verão muito difícil" no leste da Ucrânia, com a guerra a intensificar-se e a ganhar uma agressividade nunca vista na Europa desde o fim da II Guerra Mundial, em 1945.

Contexto da guerra na Ucrânia

A 24 de Fevereiro de 2022 as forças russas iniciaram a invasão da Ucrânia por vários pontos, tendo o Presidente russo dito que se tratava de uma "operação militar especial", sublinhando que o objectivo não era (é) a ocupação do país vizinho, condição que evoluiu depois para a anexação de territórios no Donbass mas também as regiões de Kherson e Zaporijia, mas sim a sua desmilitarização e desnazificação e assegurar que Kiev não insiste na adesão à NATO, o que Moscovo considera parte das suas garantias vitais de segurança nacional.

O Kremlin critica há vários anos fortemente o avanço da NATO para junto das suas fronteiras, agregando os antigos membros do Pacto de Varsóvia, organização que também colapsou com a extinção da URSS, em 1991.

Moscovo visa ainda garantir o reconhecimento de Kiev da soberania russa da Península da Crimeia, invadida e integrada na Rússia, depois de um referendo, em 2014, e ainda a independência das duas repúblicas do Donbass, a de Donetsk e de Lugansk, de maioria russófila, que o Kremlin já reconheceu em Fevereiro, tendo acrescido a esta reivindicação as províncias de Kherson e Zaporijia, depois da realização de referendos que a comunidade internacional, quase em uníssono, não reconhece.

Do lado ucraniano, a visão é totalmente distinta e Putin é acusado de estar a querer reintegrar a Ucrânia na Rússia como forma de reconstruir o "império soviético", que se desmoronou em 1991, com o colapso da União Soviética.

Kiev insiste que a Ucrânia é una e indivisível e que não haverá cedências territoriais como forma de acordar a paz com Moscovo, sendo, para o Presidente Volodymyr Zelensky, essencial o continuado apoio militar da NATO para expulsar as forças invasoras.

A organização militar da Aliança Atlântica está a ser, entretanto, acusada por Moscovo de estar a desenrolar uma guerra com a Rússia por procuração passada ao Exército ucraniano, o que eleva, segundo o ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Sergei Lavrov, o risco de se avançar para a III Guerra Mundial, com um confronto directo entre a Federação Russa e a NATO, que tanto o Presidente dos EUA, Joe Biden, como o Presidente Vladimir Putin, da Rússia, já admitiram que se isso acontecer é inevitável o recurso ao devastador arsenal nuclear dos dois lados desta barricada que levaria ao colapso da humanidade tal como a conhecemos.

Esta guerra na Ucrânia contou com a condenação generalizada da comunidade internacional, tendo a União Europeia e a NATO assumido a linha da frente da contestação à "operação especial" de Putin, que se materializou através de bombardeamentos das principais cidades, por meio de ataques aéreos, lançamento de misseis de cruzeiro e artilharia pesada, e com volumosas colunas militares a cercarem os grandes centros urbanos do país, mas que agora está concentrada no leste e sudeste da Ucrânia.

Na reacção, além da resistência ucraniana, Moscovo contou com o maior pacote de sanções aplicadas a um país, que está a causar danos avultados à sua economia, sendo disso exemplo a queda da sua moeda nacional, o rublo, que chegou a ser superior a 60%, embora já tenha, entretanto, recuperado.

Estas sanções, que já levaram as grandes marcas mundiais a deixar a Rússia, como as 850 lojas da McDonalds, a mais simbólica, abrangem ainda os seus desportistas, artistas, homens de negócios, a banca e grande parte das suas exportações, incluindo o sector energético, do gás natural e em parte do petróleo...

Milhares de mortos e feridos e mais de 9,5 milhões de refugiados internos e nos países vizinhos da Ucrânia são a parte visível deste desastre humanitário.

O histórico recente desta crise no leste europeu pode ser revisitado nos links colocados em baixo, nesta página.