Não é preciso ser adivinho para saber que a guerra na Ucrânia e a construção de uma ordem mundial multipolar que retire a hegemonia aos Estados Unidos, e que só pode ser erguida com suporte no eixo Pequim-Moscovo, ocupou uma boa parte desse demorado encontro entre Xi JInping e Vladimir Putin, que deve ter proporcionado uns passeis pelos jardins do Kremlin, aproveitando uma pequena aberta de céu azul deste início de Primavera que tirou, momentaneamente, Moscovo de um prolongado cinzento e frio Inverno.

Para já, do que foi possível perceber pelos media que cobrem esta visita a partir da capital russa, dos ocidentais aos russos e chineses, pode-se dar como certo que Xi Jinping chegou à capital russa com dois objectivos bem claros: consolidar a estratégica ligação à Federação Russa mas manter um canal aberto de potencial mediador para o conflito na Ucrânia.

Se a primeira abordagem foi confirmada pelo convite feito a Putin para visitar oficialmente Pequim ainda este ano, dias depois de o Tribunal Penal Internacional (TPI), que é um órgão judicial não integrado na estrutura das Nações Unidas, que não é reconhecido por dezenas de paíse, incluindo as grandes superpotências todas - EUA, China, Rússia, mas também Ucrânia, Israel... e mais cerca de 60 países dos 193 que compõem a Assembleia-Geral da ONU, a segunda ficou pelo menos alicerçada nos momentos que foi possível acompanhar pelos media presentes onde Putin diz a Xi Jinping que a Rússia está disponível para aceitar a posição de 12 pontos sobre o conflito no leste europeu divulgada há semanas por Pequim.

Com este fito de assumir essa condição de mediador que deve ser levado a sério pelas partes, até porque a China historicamente não assume qualquer papel para resolver imbróglios internacionais sem um prévio almofadar do contexto de forma a garantir um certo grau de sucesso da empreitada, Xi Jinping não foi tão longe na afirmação da parceria com a Rússia que já foi considerada pelos dois governos como "sólida como uma rocha" e de "amizade e cooperação ilimitada" porque isso retiraria tracção à sua condição de interlocutor respeitado pelos dois lados das trincheiras.

E foi isso mesmo que disse Xi ao seu (dixit) "bom amigo" Vladimir, confirmando frente às câmaras de TV que "a China está empenhada a desenvolver um papel construtivo" na procura de uma solução política para o conflito na Ucrânia, ao que o chefe do Kremlinlhe respondeu que estudou com toda a atenção o documento chinês dos 12 pontos, admitindo ser este uma boa plataforma para lançar a solução, sublinhando que, "hoje, como sempre, a Rússia está aberta a negociações de paz" com Kiev.

E é igualmente verdade que uma parceria sólida entre Pequim e Moscovo garante que quaisquer avanços dos países ocidentais, seja través da NATO, a organização militar que junta EUA e a Europa Ocidental, ou através do AUKUS, que junta norte-americanos e britânicos à Austrália no Indo-Pacífico, se torna praticamente impossível de ser bem sucedida, quando, em separado, tanto a China como a Federação Russa ficam em situação de inferioridade tanto no confronto militar como económico, por exemplo, via sanções, como sucede actualmente com a Rússia, e que pode vir a acontecer no contexto da reintegração de Taiwan na República Popular da China.

A lata de gasolina

Como seria de esperar, a China fez o seu trabalho de casa antes de Xi partir para Moscovo e este disse no Kremlin que "é cada vez mais alargado" o conjunto de países que visa a paz no leste europeu através das suas vozes no sentido de uma solução "racional" que dilua as tensões, contra a escalada que é "atirar gasolina para a fogueira" contrariando aquilo que a História dá como certo que, no fim, "todos os conflitos terminam através de negociações".

Mas que gasolina está a ser atirada para a fogueira, como Xi Jinping sublinhou? O Presidente chinês não o disse, mas é possível verificar nos media internacionais que o Secretário de Estado norte-americano, Antony Blinken, já veio dizer que é inaceitável qualquer "táctica" sino-russa de congelamento do conflito que permita aos russos ganhar vantagem para futuras acções.

Blinken, que se tem multiplicado em acções de construção de uma frente global anti-russa, procurando apoios nos cinco continentes, mas com especial enfoco em África, onde estevna semana passada, de novo, desta feita, na Etiópia, sede da União Africana, disse que os Estados Unidos "estão a acompanhar de muito, muito perto" esta visita de Jinping a Moscovo, posicionando-se já, através destas declarações, contra qualquer sucesso chinês para um cessar-fogo.

E na União Europeia, outras "latas de gasolina" estão a ser atiradas para a fogueira ucraniana, como, por exemplo, as declarações pouco pacíficas do seu responsável pela diplomacia, o espanhol Joseph Borrell que veio dizer que, mesmo que a China consiga um cessar-fogo ou mesmo um acordo de paz, o Presidente russo continua a ser detido se viajar para os 130 países signatários do TPI, "porque esse mandado de detenção não se dilui com o fim do conflito".

Isto, ao mesmo tempo que em Bruxelas, a presidente da Comissão Europeia, Ursula Leyen, anunciou esta segunda-feira que os 27 aprovaram mais 2 mil milhões de euros para a aquisição de munições para as forças ucranianas, que acresce aos já conhecidos 18 mil milhões aprovados em 2018 para apoio em equipamento militar para Kiev.

Face a este posicionamento desafiador do papel de mediador da China, Pequim e Xi Jinping, que não esperavam, garantidamente, outra coisa, tem como antidoto para este contravapor o anúncio, como disse o líder chinês, um "cada vez mais alargado" conjunto de países que pugnam por uma solução e estão a fazer o seu trabalho diplomático nesse sentido, como, de resto, já foi afirmado, entre outros, pelo Brasil, de Lula da Silva, que vai estar na capital chinesa para uma visita oficial já este mês, entre 26 e 31 de Março.

Com este movimento pró-acordo de paz, a China, que ainda não viu Kiev recusar a possibilidade, e que Jinping deve dar ainda mais tracção com uma conversa telefónica nos próximos dias com o Presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, ao qual se espera agora, provavelmente, manifestações de adesão de outros países, os EUA e os seus aliados ocidentais podem ver-se encostados à parede do mundo cansado de uma guerra que afecta biliões de pessoas que nem sequer sabem onde fica a Ucrânia.

Para já, Xi Jinping chega a este conflito como mediador com um trunfo na mão que todos vêm, quer queiram, quer não: o reatar das relações diplomáticas entre Arábia Saudita e o Irão, velhos inimigos que agora se unem numa frente visando o desenvolvimento regional, a ponto de o líder de facto saudita, Mohamed bin Salman, príncipe herdeiro, ter convidado o Presidente do Irão, Ebrahim Raisi, para uma verdadeiramente histórica visita a Riade, que pdoe mudar a cara do Médio Oriente 180 graus.

Contexto da guerra na Ucrânia

A 24 de Fevereiro de 2022 as forças russas iniciaram a invasão da Ucrânia por vários pontos, tendo o Presidente russo dito que se tratava de uma "operação militar especial", sublinhando que o objectivo não era (é) a ocupação do país vizinho, condição que evoluiu depois para a anexação de territórios no Donbass mas também as regiões de Kherson e Zaporijia, mas sim a sua desmilitarização e desnazificação e assegurar que Kiev não insiste na adesão à NATO, o que Moscovo considera parte das suas garantias vitais de segurança nacional.

O Kremlin critica há vários anos fortemente o avanço da NATO para junto das suas fronteiras, agregando os antigos membros do Pacto de Varsóvia, organização que também colapsou com a extinção da URSS, em 1991.

Moscovo visa ainda garantir o reconhecimento de Kiev da soberania russa da Península da Crimeia, invadida e integrada na Rússia, depois de um referendo, em 2014, e ainda a independência das duas repúblicas do Donbass, a de Donetsk e de Lugansk, de maioria russófila, que o Kremlin já reconheceu em Fevereiro, tendo acrescido a esta reivindicação as províncias de Kherson e Zaporijia, depois da realização de referendos que a comunidade internacional, quase em uníssono, não reconhece.

Do lado ucraniano, a visão é totalmente distinta e Putin é acusado de estar a querer reintegrar a Ucrânia na Rússia como forma de reconstruir o "império soviético", que se desmoronou em 1991, com o colapso da União Soviética.

Kiev insiste que a Ucrânia é una e indivisível e que não haverá cedências territoriais como forma de acordar a paz com Moscovo, sendo, para o Presidente Volodymyr Zelensky, essencial o continuado apoio militar da NATO para expulsar as forças invasoras.

A organização militar da Aliança Atlântica está a ser, entretanto, acusada por Moscovo de estar a desenrolar uma guerra com a Rússia por procuração passada ao Exército ucraniano, o que eleva, segundo o ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Sergei Lavrov, o risco de se avançar para a III Guerra Mundial, com um confronto directo entre a Federação Russa e a NATO, que tanto o Presidente dos EUA, Joe Biden, como o Presidente Vladimir Putin, da Rússia, já admitiram que se isso acontecer é inevitável o recurso ao devastador arsenal nuclear dos dois lados desta barricada que levaria ao colapso da humanidade tal como a conhecemos.

Esta guerra na Ucrânia contou com a condenação generalizada da comunidade internacional, tendo a União Europeia e a NATO assumido a linha da frente da contestação à "operação especial" de Putin, que se materializou através de bombardeamentos das principais cidades, por meio de ataques aéreos, lançamento de misseis de cruzeiro e artilharia pesada, e com volumosas colunas militares a cercarem os grandes centros urbanos do país, mas que agora está concentrada no leste e sudeste da Ucrânia.

Na reacção, além da resistência ucraniana, Moscovo contou com o maior pacote de sanções aplicadas a um país, que está a causar danos avultados à sua economia, sendo disso exemplo a queda da sua moeda nacional, o rublo, que chegou a ser superior a 60%, embora já tenha, entretanto, recuperado.

Estas sanções, que já levaram as grandes marcas mundiais a deixar a Rússia, como as 850 lojas da McDonalds, a mais simbólica, abrangem ainda os seus desportistas, artistas, homens de negócios, a banca e grande parte das suas exportações, incluindo o sector energético, do gás natural e em parte do petróleo...

Milhares de mortos e feridos e mais de 9,5 milhões de refugiados internos e nos países vizinhos da Ucrânia são a parte visível deste desastre humanitário.

O histórico recente desta crise no leste europeu pode ser revisitado nos links colocados em baixo, nesta página.