Qualquer das esculturas tem uma existência de mais de meio século. Muita coisa se passou no decurso deste tempo, incluindo uma onda de vandalismo que causou danos de grande monta à integridade das obras. No Sumbe, o homem nú agachado, que simbolizava os descobrimentos portugueses, foi arrancado das alturas do seu pedestal, logo a seguir a 1975 pelos revolucionários da época que defendiam que Portugal não tinha descoberto nada aqui, senão as riquezas da terra que exploraram em seu benefício durante cinco séculos. Os povos do mundo não são descobertos vivendo em seus territórios, por gente oriunda de povos de outras latitudes. Os povos do mundo existem simplesmente, com as suas próprias formas de organização social, política e, sobretudo, com uma cultura própria, que os diferencia dos demais.

O "Monumento a Aviação" e o seu pedestal em forma de onda do mar mudaram milagrosamente de local, saindo do largo defronte ao aeroporto do Lobito para o chamado cruzamento da Bolama, no bairro da luz. Por seu lado, a criança do conjunto "Caminhando" foi arrancada sem dó nem piedade da guarda das duas mamãs-quitandeiras com balaios de fruta à cabeça. O conjunto foi inexplicavelmente mudado de lugar na Colina da Saudade. Já a "Sereia dos Trópicos", que retrata uma mulher jovem surpreendida a chapinhar água para o dorso nú, sofreu incontáveis vergastadas no lombo que a arrancaram de sua base em plena água. As duas últimas esculturas foram alvo de obras de restauração por citadinos de boa-fé. No Lobito, incólumes, apenas ficaram as estátuas o "Poeta" e o "Homem do Lomango", embora não tenham faltado as iniciativas para a sua destruição.

Lobito, a bela cidade do litoral-centro de Angola, constitui um destino turístico por excelência. A urbe está implantada em redor de uma espectacular baía natural com cerca de dois quilómetros de comprimento e mil e quatrocentos metros de largura. É aqui onde se situa um dos principais portos da costa ocidental de África, o conhecido Porto Comercial do Lobito. No interior da baía, as águas são calmas e propícias para a prática de desportos náuticos. Praias extensas estendem-se de um e de outro lado de uma extensa língua de areia que entra mar adentro, em direcção a Norte. Nesta zona privilegiada, foi implantado o aglomerado urbano no qual pontificam exemplares de arquitectura únicos, que atestam não só a presença colonial portuguesa nesta região, mas denotam igualmente a influência dos mestres ingleses que, no início do século XX. participaram na construção do porto e do Caminho de Ferro de Benguela.

Sem obedecer a critérios de importância, podemos apresentar as esculturas: "Caminhando", "Monumento à Aviação", "O Homem do Lomango", "O poeta", "A Sereia dos Trópicos". São obras de arte que permanecem até aos dias de hoje como imagens de grata contemplação. Todas têm a assinatura do engenheiro português Canhão Bernardes. Escultor autodidacta de rara sensibilidade (começou a fazer escultura por entretenimento aos 42 anos de idade), viveu no Lobito durante as décadas de 60 e 70 do século passado. Com a inesperada eclosão da guerra , ele rumou para o Brasil, onde morreu em 2010.

Bernardes deixou espalhado, não só no Lobito, mas igualmente nas províncias do Kwanza-Sul e do Bié, o testemunho de um extraordinário talento. Na época, estava em voga (e ainda hoje assim é em muitos lugares do planeta) o frenesi de encher as praças públicas com heróis colocados em pedestais. Canhão Bernardes partilhava da opinião que, ao fomentar-se a escultura em lugares públicos, não deveria ser com a imposição de heróis. Estes, volta e meia são derrubados, em consequência da queda dos regimes e sistemas que simbolizam. Para Canhão Bernardes, a escultura deveria significar algo mais para as pessoas, cujos itinerários se vão cruzando ao longo do dia. Um meio de aliviar, através da beleza, os percursos rotineiros entre a casa e o trabalho.

"A escultura deve servir como veículo de encanto e de Humanidade e criar um anseio de beleza, ajudando a evolução das pessoas, a caminho de uma harmonia social", disse o artista, quando apresentou o projecto de uma escultura que viria a ser conhecida como " Monumento à Humanidade" na capital do Bié. Bernardes deixou a marca indelével do seu buril virtuoso no rosto de várias cidades angolanas.

O "Monumento à Aviação", instalado na praça defronte ao edifício do aeroporto do Lobito, enaltece a audácia e o espírito de conquista do homem, face ao desconhecido. O monumento foi considerado como uma obra notável de engenharia, inteiramente executada no Lobito e exclusivamente com recursos técnicos locais. Os trabalhos de fundição foram realizados nas oficinas do Caminho-de-ferro de Benguela, comandados pelo engenheiro Alberto Soares Ribeiro. Foi necessária muita ousadia, até se conseguir suspender, no pedestal, apenas por uma das coxas, um cavalo com 6,30 metros de comprimento do focinho até à cauda, pesando quase duas toneladas. Tal só foi possível por meio de uma barra de aço embutida inusitadamente na estrutura em bronze. O autor queria ir além de Milles na escultura "Pégaso", na qual o cavalo rompante é sustentado por um enorme matacão de bronze colocado no centro.

Canhão Bernardes recorreu ao cavalo, como símbolo de transporte. E fê-lo, não como em "Centauro" ou "Pégaso", nem tampouco em formato de flecha ou tapete voador, como nos contos das mil e uma noites. Mas sim como um foguetão, pesado e metálico: "a montada teria de vencer a gravidade e mover-se para o infinito, arrastando no dorso o Homem, que o comanda". Correndo, em galope desenfreado, o animal é domado por um destemido cavaleiro, com uma só mão, pousada sobre o seu dorso. Destemidamente, o homem dirige a montada para o Oeste desconhecido. Cavalo e cavaleiro vão voando do Lobito para o mar, roçando a crista altaneira de uma vaga oceânica. Uma placa brilhante regista para a posteridade:

"Aos homens que, depois do mar domado, querem o infinito".
"Caminhando", por seu lado, embora nada tenha a realçar, no que se refere à técnica empregue, mostra-nos um conjunto familiar, duas mulheres na sua lide diária, com balaios à cabeça, levando pela mão um garoto a saltitar. Uma das mulheres apresenta o ventre proeminente, na certeza de que, com a maternidade, contribuirá para a continuação da espécie humana. Observado à distância, o grupo, em silhueta, destaca a harmonia da família, a vida vivida na simplicidade e na dignidade.

A escultura tem 2,40 m de altura e foi executada em cimento de produção local, tendo custado na época uns simples 15 contos. Foi mandada executar pelo capitão Alves Aldeia, na época presidente da Câmara Municipal do Lobito, que vira uns dias antes a maqueta do projecto. Despertaram-lhe atenção aqueles rostos, sem olhos, sem narizes e sem orelhas, pessoas anónimas que povoam um mundo sem desigualdades sociais. Alves Aldeia não hesitou em mandar, de imediato, executar a obra. Colaborou na sua execução, um funcionário da Câmara Municipal do Lobito, de nome Valadares.

Ao olharmos para "Caminhando", a imagem remete-nos a um súbito refrear no egoísmo, a uma quebra na jactância de uma pretensa superioridade de uns homens sobre outros homens. Contemplando a singela silhueta projectada contra o sol poente, invade-nos um irreprimível desejo de compreendermos os outros tais como eles são, de sentirmos o calor de suas mãos nas nossas, contentes por não mais nos sentirmos sós neste mundo cruel e pecador. Era esse, no fundo, o desejo do artista.

*Advogado e jornalista