Encontra-se nesta concepção a preocupação com o equilíbrio necessário entre direitos civis e políticos e direitos económicos, sociais e culturais. Daí a ideia expressa, na última conversa, necessidade de se pensar na africanização da democracia, que se me oferece tão natural quanto a ideia de se africanizar o desenvolvimento. Isto é, a intencionalidade do desenvolvimento implica a investigação de caminhos que sugiram políticas, livremente escolhidas, que apontem para a transformação e modernização da nossa sociedade, e que tenham em conta não só as realidades económicas, sociais e culturais do nosso povo mas também as condições ambientais do território. Esta concepção nada tem a ver com desejos de regresso a paraísos pré-coloniais ou de negação de valores e princípios universais, mas rejeita aventuras de modernizações aceleradas que impedem o controlo dos processos pelos cidadãos e destroem culturas ancestrais.

O que se tem pensado para o projecto do Corredor do Lobito faz temer um regresso mais à lógica neocolonial, de enclave e extractivista, que configura situações como a da "doença holandesa", que nos vai destruindo pelo modo como se tem feito a gestão do petróleo e dos diamantes. Na conferência da Catumbela foram apresentadas ideias que apontam noutra direcção, como, por exemplo, a de se considerar o Corredor do Lobito e a sua zona de influência - abrangendo a parte Sul do Cuanza Sul e da Lunda Sul e a parte Norte da Huíla, com uma população estimada em 26% do total de Angola - como uma iniciativa de desenvolvimento espacial. Esta estratégia, que a literatura trouxe à luz, a partir do final dos anos 80, com base em experiências de outros países da região, visa, entre outros aspectos, a adopção de políticas económicas, nomeadamente o investimento em infra-estruturas e serviços de transporte e actividades conexas envolvendo, em parceria, o sector público, o sector privado e as economias locais. No caso da região em causa, e na linha da concepção de desenvolvimento atrás esboçada, não pode ser negligenciado o legado do CFB na região, não apenas no transporte de mercadorias, principalmente até meados da década de 50, mas também na mobilidade de pessoas - tão cara aos angolanos desde há muito - e, sobretudo, na mobilidade social ascendente da população, como a história bem documenta. Não por acaso, o CFB representa uma lembrança dos "bons tempos", como bem assinala Ana Duarte.

Numa outra abordagem complementar, defendeu-se, na conferência, uma estratégia ou modelo com o focofocalizados nas comunidades e nas pessoas, em consonância com o que se poderá considerar uma tentativa de construção de uma estratégia de desenvolvimento local participativo - uma contribuição que a ADRA procura dar ao debate, ainda tímido, sobre um modelo de desenvolvimento para Angola numa perspectiva cidadã e sustentável. Um modelo que tenha por base o conhecimento da realidade nos seus aspectos multiformes; a potenciação e valorização do conhecimento e dos sistemas e meios de vida endógenos com baixo recurso a insumos externos; o aproveitamento das dinâmicas do mercado informal para permitir ligações a mercados mais amplos; o fomento de actividades económicas, como, por exemplo, pequenas indústrias de proximidade e outras microempresas e cooperativas que permitam urdir um tecido empresarial emergente e também a criação de emprego não-agrícola; a difusão de tecnologias que permitam aumentos de produtividade e o seu controlo pelos utilizadores, pensando, principalmente, em ajudar as mulheres e os jovens a enfrentar os actuais desafios; a criação de mecanismos de micro finanças adaptados
às condições locais em matéria de gestão e de controlo.

Neste ponto da reflexão, vem-me à memória a frustração do contratado do poema de António Jacinto quando se deu conta de que não sabia escrever a desejada carta para a sua amada. O conjunto de proposições feitas durante a conferência tem pressupostos para que o sucesso aconteça. Com autarquias, seria mais fácil fazer acontecer a vida nos municípios. Contudo, e dadas as dificuldades que se vão colocando à sua implementação, deviam, pelo menos, ser tomadas medidas para uma descentralização de processos, como, por exemplo, a obrigatoriedade de os projectos com recursos não serem dirigidos centralmente, deixando as autoridades locais sem qualquer poder de decisão que permita integração e coordenação das intervenções a nível local.

Na realidade, o Governo angolano tem uma visão distorcida do desenvolvimento, uma mistura de elementos de modernização - com acento no desejo de que a estratégia seja acelerada num contexto de instituições extractivas de grande fragilidade e exposição à corrupção - e de neoliberalismo - que é adulterado pelo disfuncionamento e viciação do mercado e pela incapacidade das instituições e também pelos excessos de uma burocracia castradora de iniciativas. E o Governo tem, ainda, uma visão ambígua sobre o desenvolvimento agrícola, pois, apesar da anunciada importância conferida à agricultura familiar, justificada pelo seu peso na produção de alimentos - mais de 80% da produção nacional - o tratamento que esta tem merecido por parte das instituições fica muito aquém daquilo que é exigido. É o caso da titularidade de terras comunitárias, prevista na Lei de Terras, que tem permanecido esquecida ao longo de mais de vinte anos, colocando as comunidades em situação de grande insegurança fundiária e prejudicando ou impedindo o relacionamento com as instituições de crédito.

Outro exemplo é o modo como a AGT lida com as cooperativas, que, na realidade, ainda não podem ser consideradas microempresas no que respeita a fiscalidade, não se vislumbrando, contudo, preocupações para se encontrarem soluções, pondo em risco a viabilidade e mesmo a existência de organizações que começam a desempenhar um papel fundamental na ausência de um sector privado âncora nas áreas rurais.

Num emaranhado mundo de problemas, parece que a grande preocupação do Executivo é a de comprar e distribuir tractores, com um tempo de vida médio inferior a dois anos, por razões suficientemente conhecidas, mas permanentemente ignoradas, indiferentes aos gastos e ao prejuízo da sua própria imagem.
Diz-se que o mais importante é resolver os problemas do povo, mas corremos o risco de o povo não ver os seus problemas resolvidos, e ficar simplesmente a ver o comboio a passar, como possivelmente ficarão as populações pastoris do Cunene a ver a água do canal do Cafu a passar pelas terras que sempre foram sua pertença. n
*Título tomado por empréstimo da Doutora Ana Duarte, do Instituto Universitário Lusíada do Lobito