A decisão ousada, corajosa e irreverente do diplomata brasileiro abriu um novo capítulo do relacionamento do Brasil com África, revelou também a autonomia da diplomacia brasileira perante o poder da ditadura militar vigente naquele país, um posicionamento perante Portugal e um compromisso com a liberdade e independência de Estados africanos.

Um homem que foi capaz de romper preconceitos e de quebrar barreiras. Um reconhecimento merecido e que apenas peca por ser tardio no território angolano. O Itamaraty (sede do Ministério das Relações Exteriores do Brasil) precisava de ter um representante junto dos três movimentos de libertação (FNLA, MPLA e UNITA) em Angola, para melhor conhecer o País e estabelecer as relações futuras, num cenário em que o Brasil sempre se posicionara como país neutro.

Em 1974, Ovídio Melo foi convidado pelo Chanceler António Azeredo da Silveira e pelo então chefe do Departamento de África, Ásia e Oceânia, seu amigo e conterrâneo Ítalo Rappa, para representar o Brasil junto do Governo de Transição que conduziria Angola à independência. A sua missão em África tinha também por objectivo propor a criação das chamadas Representações Especiais em Luanda e Lourenço Marques (actual Maputo).

Essas estruturas eram uma espécie de embaixadas antecipadas e neutras do Brasil em África. Ele viajou para Nairobi e de lá para Dar es Salaam (Tanzânia), com o objectivo de contactar a FRELIMO e o MPLA. Agostinho Neto estava ausente da cidade, Samora Machel (que recebera Zappa um mês e meio antes) designou Marcelino dos Santos, que era o Vice-Presidente e encarregado das Relações Exteriores da FRELIMO. Estando na cidade, Ovídio Melo procurou o escritório do MPLA e foi recebido pelo chefe do escritório, "um negro de Cabinda", como ele relata nas suas memórias, de nome André Pretoff (Santana André Pitra Pretoff, antigo ministro do Interior de Angola), embora o autor o trate por "Petrov" e não Petroff, como é conhecido entre nós. Petroff já sabia da proposta que ele havia feito à FRELIMO e informou-lhe que Agostinho Neto voltaria brevemente e que teria prazer em o receber e que haveria de lhe telefonar. Regressou a Nairobi, mas, como o telefonema de Petroff demorava a chegar, voltou a Dar es Salaam, e já Agostinho Neto lá se encontrava. Insistente, estudou as rotas e deu conta que Neto embarcaria de Dar es Salaam num voo da East African Airways, proveniente de Roma e que passaria por Nairobi. Contactou o chefe da segurança do aeroporto da capital tanzaniana, entregou-lhe um cartão para fazer chegar a Neto por via de Petroff.

Valeu a ousadia e a crença. Certo é que Ovídio Melo voltou de Dar es Salaam sentado ao lado de Agostinho Neto, na 1.ª classe do avião que estava, inteiramente, ocupada por dirigentes do MPLA que viajavam para Luanda, a fim de integrar o Governo de Transição. Durante a viagem, Neto mostrou-se contente com a nova orientação da política externa brasileira em relação a África e concordou ali mesmo com a abertura da Representação Especial em Luanda. Em Luanda, manteve encontros cordiais com os três primeiros-ministros, nomeadamente Lopo do Nascimento (MPLA), José N"dele (UNITA) e Johnny Pinnock (FNLA), nos quais lhes falou da Representação Especial. Viajou para o Bié, onde se encontrou com Jonas Savimbi e apresentou a proposta da Representação Especial. Foi depois para Kinshasa para manter encontro com Holden Roberto, mostrando a posição neutral do Brasil e a ideia de que procurava o consenso de todos. Certo é que, a 22 de Março de 1975, o Brasil tinha a sua Representação Especial em Luanda e Ovídio Melo era o seu representante. Andou por cá com a esposa hospedado no Hotel Trópico e, um mês antes da proclamação da independência, terá enviado uma correspondência com observações e recomendações ao Itamaraty, na qual dizia: "Temos sido respeitosos para com todos os movimentos organizados em Angola, temos sido neutros em todas as lutas que presenciámos, tínhamos desejado chegar cedo a Luanda para planear as relações futuras.

Deveríamos, então, reconhecer Angola na data exacta da independência, porque estivemos sempre e estaremos, no futuro, irmanados pela língua, pela cultura e pela História". O certo é que o reconhecimento da independência de Angola feito por Ovídio Melo criou um conflito entre o então Presidente do Brasil, general Ernesto Geisel, e o seu ministro do Exército Sylvio Coelho da Frota. O Itamaraty ficou com o Presidente Geisel e correu perigo porque passou a estar em contradição com o ministro do Exército de um Brasil em pleno estado de ditadura militar.

Este mesmo ministro do Exército (demitido em Outubro de 1977) tentou, em 1978, derrubar o Presidente com o argumento de que, ao reconhecer Angola, Geisel estava a levar o Brasil para o comunismo. Ovídio Melo chegou a escrever nas suas memórias o seguinte: "Frente às acirradas e passionais discussões que esta política suscitou, o Itamaraty omitiu-se na minha defesa", chegando a admitir que fora um "escuro e controverso episódio da história diplomática brasileira". Pagou caro na altura pela ousadia e "atrevimento" que se veio a revelar num dos actos mais importantes e relevantes da política externa brasileira e, principalmente, na sua relação com África.