Uma tal asserção fundamenta-se no facto de, na circunstância em que a economia mundial tivesse uma moeda única, os efeitos de uma expansão fiscal e monetária seriam como os que ocorrem numa economia fechada do actual SMI. Tais efeitos, embora mais pervasivos, levariam a que os custos decorrentes de um mais alto nível de taxa de juro ? no caso da expansão fiscal ? e o imposto inflacionário ? no caso da expansão monetária ? fossem suportados pelos diferentes países na proporção do tamanho das respectivas economias, o que Mundell considerou ser a dádiva potencial que se poderia esperar de um SMI provido de moeda única.

Acontece que, na reunião de Bretton Woods de 1944 que deu lugar à criação do Fundo Monetário Internaciobnal (FMI) e do Banco Internacional para a Reconstrução e Desenvolvimento (Banco Mundial), os EUA recusaram a criação de uma moeda mundial. Este comportamento foi descrito por Mundell como "historicamente típico das superpotências"3, a razão principal residindo no facto de uma moeda mundial reduzir o papel da moeda da superpotência nas finanças internacionais - que eram os EUA, na altura -, ao reduzir a sua procura. Conforme fez notar no trabalho referido, enquanto vigorou, o sistema monetário que prevaleceu até 19714 foi, em certa medida, satisfatório, a avaliar pelos baixos níveis de inflação, baixo nível de desemprego e rápido crescimento económico. O dólar americano e o ouro tornaram-se, a partir de 1934, intercambiáveis, tendo em conta a convertibilidade do dólar em ouro (a USD 35,00 por onça), vindo o dólar americano então a tornar-se num instrumento de trocas amplamente utilizado, enquanto que o ouro era usado como unidade de conta e de liquidação final, através da correspondente taxa de câmbio.

Com o abandono do padrão ouro no SMI em 1973, ao que se seguiu o termo da convertibiliade do dólar americano em ouro, este veio se caracterizando por arranjos monetários assentes em zonas monetárias e regimes cambiais de taxas flutuantes. Foi então que as pequenas economias, em busca de estabilidade, viram-se na necessidade de ancorar as suas moedas a uma moeda mais estável ou dominante nas transacções internacionais ? moeda de uma grande economia, com poder oligopolista no comércio internacional, uma divisa, moeda de reserva ? através do estabelecimento de taxas de câmbio fixas. Deste modo, o dólar americano, o marco alemão, o yen japonês, a libra esterlina, e o franco francês ganharam importância na praça financeira mundial. As pequenas economias fixaram então o valor das suas moedas em relação à "moeda pivot" (pivot currency)5 eleita, estabelecendo depois a taxa de câmbio da sua moeda face a outras de forma cruzada.

Ao procederem assim, entretanto, essas economias deviam manter disciplina monetária, por forma a prevenirem a depreciação, e submetiam-se aos efeitos da inflação no país da moeda pivot, tal como à depreciação desta em relação a outras moedas de reserva, em relação aos bens e em relação ao ouro.

As pequenas economias que não perseguissem uma política monetária consistente com a taxa de câmbio fixa, sofriam de flutuações cambiais decorrentes da defasagem entre a procura e a oferta de moeda real na economia. Em tais casos, a expansão monetária, mantendo-se o resto constante e assumindo-se perfeita paridade do poder de compra, resulta, sob o regime de taxas de câmbio fixa, em perda de reservas externas e, sob o regime de taxas de câmbio flutuante, em depreciação nominal da moeda e em aumento dos preços domésticos. Para além disso, sob o regime cambial de taxa fixa, uma expansão fiscal, mantendo-se o resto constante, provoca o aumento das taxas de juro reais domésticas, entrada de capitais externos e apreciação da moeda doméstica face à moeda pivot; sob o regime cambial de taxa flutuante, o resultado será também o aumento das taxas de juro reais, a entrada de capitais externos, mas com depreciação nominal da moeda, e aumento do nível de preços6. Hoje, o dólar americano (58%) e o euro (20%) - que surgiu com a União Monetária Europeia, da área monetária do marco alemão - e, em muito menor escala, o yen japonês (6%) e a libra esterlina (5%), são as moedas que servem extensivamente de moeda internacional.

Nos países com moeda de reserva, a disciplina da política monetária é imposta pela necessidade de prevenirem os custos domésticos da inflação e a depreciação da moeda face a outras principais moedas de reserva, aos bens e ao ouro ? depreciação essa que mina a confiança no activo ?, enquanto se mantém a competitividade da economia. Porém, a inconvertibilidade do dólar em ouro levou ao relaxamento da disciplina monetária, o que conduziu a uma menor estabilidade nos preços mundiais.

Conforme Mundell7 fez notar, "o preço ao consumidor triplicou em 15 anos, entre 1968 a 1983, então a maior inflação em tempo de paz nos EUA.". Contudo, o papel de activo de reserva que a moeda das grandes economias desempenham dá lugar a que o nível sustentável da dívida pública, do défice da balança de pagamentos e do imposto inflacionário nesses países seja muito mais elevado do que seria sem esse papel ou se comparado com o das pequenas economias, sobretudo as economias em desenvolvimento. Tal como exposto por R. A. Mundell em The Optimum Balance of Payment Deficit, quanto mais elevada for a procura da moeda de reserva e a taxa de crescimento nesse país, tanto maior será o nível óptimo do défice da balança de pagamentos do país emissor da moeda de reserva. Então, a importancia da moeda de reserva será tanto mais elevada quanto maior for a sua procura no mercado financeiro. Com o aumento da importância da moeda de reserva no mercado financeiro, também aumentará, em termos absolutos, o nível óptimo do défice da balança do seu país emissor, bem como o potencial do imposto inflacionário. O aumento do nível óptimo do défice da balança de pagamentos do país com moeda de reserva pode provocar o aumento das taxas de juro internacionais, o que penaliza os países devedores com menor capacidade de participar no mercado internacional de capitais; a taxa de juro real estará então enviesada contra os países que terão de pagar elevados prémios de risco; também, mercados financeiros domésticos pouco desenvolvidos podem facilmente conduzir esses países a optarem pelo financiamento inflacionário, o que piora a sua credibilidade na praça financeira.

Entretanto, tanto quanto mais activos de reserva substitutos, mais competitivos, estiverem disponíveis, se uma dada trajectória de política fiscal e monetária conduzirem um país com moeda de reserva para o nível óptimo de défice da sua balança de pagamentos, a sua moeda, singular, poderá perder a sua importância nas finanças internacionais, se tal nível óptimo for ultrapassado. Ora, esse é um dos principais receios dos EUA em relação ao dólar americano, pelo risco que isso coloca de perda do domínio do sistema monetário internacional, incluindo o seu sistema de pagamentos. E é isso que justifica que procurem manter a União Europeia (UE) dividida, do que releva a dificuldade desta evoluir para uma democracia federal, o que requereria a constituição de um Tesouro Único e umas forças armadas integradas, como ressaltou Yanis Varoufakis no seu artigo Europe"s Latest Humiliation8.

Contudo, a atitute dos EUA enquanto principal potência mundial, no que se inclui a promoção de sanções económicas a vários Estados e o lançamento de guerras comerciais, vem acelerando o incentivo do mundo não ocidental para uma nova ordem mundial, multipolar, que contempla, entre outros aspectos, a quebra da hegemonia do EUA no sistema monetário mundial. É nesse âmbito que se enquadram a inciativa de alguns Estados africanos promoverem o uso das respectivas moedas nacionais nas suas transacções bilaterais, assim como o propósito dos BRICS criarem uma moeda sua e um Fundo Monetário - depois de já terem lançado o seu Banco de Desenvolvimento -, além de um sistema de pagamentos que contraponha o Swift. Isso é uma possibilidade real e mais próxima do que no passado, tendo em conta que vem aumentando a interdependência e a complementaridade entre as economias emergentes e também de outras pequenas economias, com o correspondente aumento da sua quota na economia mundial. E com isso, cresce também a importância das respectivas moedas no conjunto, o que abre a possibilidade da sua integração numa união monetária, seja ela na base de uma zona monetária ancorada numa das moedas mais preponderantes entre as economias emergentes ou por ponderação das moedas com base no peso respectivo de cada economia no conjunto da economia dos países que integrem a união monetária.

Então, a quebra da hegemonia dos EUA no Sistema Monetário Internacional parece estar à vista, embora adivinhe-se que os EUA não permitirão a queda do dólar sem luta. Concretizado o fim da hegemonia americana, o futuro poderá ditar que, finalmente, se tenha a Hamlet se junte o Príncipe da Dinamarca que R. A. Mundell entendia ser uma lacuna do actual sistema monetário internacional.n

1Com base no ensaio do autor Reserve Currency Country vs.Small Open Economy:a look to the impact of fiscal and monetary expansions in the context of the present International Monetary Arrangements", Universidade Columbia, Nova Iorque, NY, 1997.
2Robert A. Mundell: "The International Monetary System: The Missing Factor", Journal of Policy Modeling 17(5): 479-492 (1995).
3Ibiden.
4Padrão dólar, com o dólar americano intercambiável com ouro. O dólar americano era convertível em ouro à taxa de USD 35,00 por Onça de Ouro.
5Moeda em redor da qual a taxa de câmbio flutua. Ela define a zona monetária e é tal como definido em "African Trade, Politics and Money", R.A. Mundell (1970?).
6Ressalva-se o caso das economias em desenvolvimento nas quais, em face da fragilidade dos mercados financeiros locais, a expansão fiscal pode ser interpretada como o prelúdio de uma expansão monetária, o que tende a elevar as expectativas de depreciação da moeda local face às moedas de reserva, circunstância que leva à fuga de capitais e ao aumento das taxas de juro demandadas pelos credores para os empréstimos a esses países, em função do maior risco de default.
7Mundell, Roberrt A. "International Monetary System: The Missing Factor" (ver a nota de rodapé 2).
8Project Syndicate, 23/09/2021.