"Uma casa dividida contra si mesma não subsistirá"

Abraham Lincoln, 1858.

O mal primordial é a negação da humanidade do outro e revela, na natureza humana, um ímpeto de dominação. Nesse ímpeto para dominação, há uma tendência natural para ver a ideia de justiça como a lei do mais forte, a mesma teoria de justiça adoptada por Trasímaco na célebre obra de Platão, A República, concepção essa refutada por Sócrates pela sua inerente incapacidade de universalização, porque o mais forte hoje pode amanhã tornar-se o mais fraco.

A escravatura transatlântica foi um dos exemplos dessa negação da alteridade e da adopção de uma teoria de justiça baseada na lei do mais forte, até contra a igualdade natural dos seres humanos, proposta por Cristo e pelos apóstolos na tradição e nos textos Cristãos. Não havia maior contradição do que baptizar os escravos e enviá-los para as Américas como mercadorias, por um lado eram humanos merecedores da salvação de Cristo, por outro meras mercadorias, simplesmente por serem diferentes.

Ottobah Quobnah Cuogano, no seu célebre livro sobre a escravatura, Thoughts and Sentiments on the Evil and Wicked Traffic of Slavery and Commerce of the Human Species, publicado em 1787, revela que justificar a inferioridade do outro é o primeiro passo para justificar a sua opressão e consequentemente a escravatura africana. Cuogano foi um antigo escravo do Gana que foi liberto na famosa decisão judicial Sommerset de 1772, onde Lord Mansfield decretou que a Common Law não reconhecia a escravatura de seres humanos na Inglaterra e Gales.

Alexis de Tocqueville, na sua famosa obra Democracia na América, publicada em 1835, demonstrou a contradição inerente da democracia americana e a presença da escravatura, o "pecado original" da Nação americana que combateu contra a tirania Britânica pela liberdade dos colonos, negando essa mesma liberdade aos seus escravos e outros grupos. Para Tocqueville, a escravatura era uma construção social e política, criada na lógica da lei do mais forte, reconhecida pelo Supremo Tribunal na decisão Dred Scott de 1857, na qual se negou até a cidadania aos negros americanos, não escravos. A escravatura nos EUA terminou com o final da brutal Guerra Civil Americana (1861-1865) e com a adopção da 14.ª e 15.ª emendas constitucionais. Infelizmente, levou mais de 1 século até haver uma igualdade legal com o desmantelamento da segregação racial que continuou no Sul dos EUA, reconhecida pela famosa decisão judicial Plessy vs. Ferguson de 1896 ("Iguais mas separados") e que terminou com uma série de decisões judiciais, entre as quais a famosa Brown vs Board of Education de 1954 e com a adopção do Civil Rights Act de 1964 pelo Congresso Americano.

Outra negação é a ideia de que o racismo cessou nos EUA e de que já não existe e de que os anti-racistas é que são racistas. É uma estratégia típica de retirar legitimidade moral à vítima e desumanizar o outro para justificar a opressão. É fácil tolerar a discriminação quando diabolizamos o outro e retiramos a sua humanidade e dignidade. O racismo é uma ideologia totalitária e colectivista, cuja permanência só se justifica com essa narrativa, culpabilizando o outro pela sua condição e pelo uso da "carta racial". A narrativa negacionista do Racismo é Maniqueísta e acusa os outros de "vitimização", precisamente para negar ao oprimido a sua voz e o seu direito natural de não se calar perante a injustiça.

A comunidade afro-americana tem muitos problemas, mas negar que há racismo nos EUA é típico de narrativas negacionistas que servem para justificar o mal primordial, a negação do outro e do direito natural de indignação perante a injustiça. Também revela desconhecimento total sobre a história acerca do racismo dos EUA no período que seguiu a Guerra Civil Americana até ao Civil Rights Act de 1964.

Reconhecer que existe um problema racial nos EUA não significa negar a existência do mal primordial noutros países. O mal primordial existe em todo o mundo. O genocídio do Ruanda revela essa desumanização do outro, feita contra os Tutsis no genocídio de 1994 e é um exemplo dessa lógica de negação da alteridade do outro, apenas por pertencer a outro grupo étnico. O Holocausto foi também outro exemplo dessa visão totalitária de poder e do mal primordial, onde não se reconheceu no outro a sua dignidade como ser humano, numa lógica antissemita onde o judeu é tratado como não humano. O Holocausto ocorreu no espaço civilizacional supostamente mais "avançado", como se a presença de tecnologia ou de ciência fosse sinónimo da existência de justiça ou de bondade. Infelizmente, para os judeus, historicamente perseguidos, a Europa foi o sepulcro de milhões na longa noite que foi a Shoah (Hebraico para Holocausto).

Mas acima de tudo, estes acontecimentos nos EUA revelam não apenas um colapso do contrato social entre os vários grupos, num país que nunca foi etnicamente homogéneo e é composto por descendentes de imigrantes, exacerbado pelo colapso económico devido ao Covid-19 e revela que as feridas que vêm do passado que nunca foram completamente saradas.

Mas há muitos mitos que persistem e são perpetuados por essa narrativa de desumanização do outro, precisamente na tentativa de deslegitimar a narrativa do oprimido e negar a sua alteridade e a sua voz. Negar o direito de revolta da consciência humana perante a injustiça e perante os direitos naturais dos seres humanos é imoral e é aceitar a tese de Trasímaco de que a justiça é a lei do mais forte. Parte do problema é que as pessoas só se revoltam quando são elas a sofrer injustiças, quando ocorre com os outros, é fácil ficar indiferente. Essa falta de empatia não nega o direito natural de não nos calarmos perante a injustiça, onde quer que ela se encontre.

Acima de tudo, o Racismo, tal como outras ideologias totalitárias, é uma ideologia que se baseia na ideia de hierarquias de raças e nega valor ao indivíduo e à igualdade natural dos seres humanos como parte da mesma comunidade. É acima de tudo uma ideologia antiliberal, anticristã e anti-humana, mas, infelizmente, continua viva na mente de muitas pessoas, e o assassinato de George Floyd veio recordar esse facto, afinal não somos tão civilizados ou superiores. Que a sua memória sirva para recordar a centralidade da dignidade humana e a sua sacralidade perante o divino. Afinal, somos todos criaturas do Altíssimo!