Previamente marcada para o início da tarde desse dia de Setembro, de um prolongado e severo cacimbo, com temperaturas anormalmente baixas, a fazer lembrar climas frios do hemisfério norte, essa cerimónia era um momento importante para as duas famílias.
Para dar início ao ritual, a família do jovem, num grupo muito restrito, devido às medidas de prevenção e de combate à maldita pandemia Covid-19, decretadas pelo Governo do Presidente Filipe Nyusi, reúne-se para traçar a estratégia a adoptar na apresentação.
À hora previamente agendada, estão presentes na reunião, em casa dos pais do jovem, o tio, o irmão do pai, em substituição deste que falecera há uns anos, a tia mais velha, irmã do pai, outra tia, irmã da mãe, a própria mãe, mais um tio, irmão da mãe e a sua mulher e a irmã mais velha do jovem.
Primos e outros familiares convidados são deixados de fora desse encontro, visando definir o que e como falar e, sobretudo, como responder a eventuais exigências da contraparte sobre os passos subsequentes à apresentação.
Passos esses que são, por um lado, o lobolo (alembamento), casamento tradicional, de acordo com os preceitos locais e tido como o mais valioso pelas famílias do Sul de Moçambique, por outro, o casamento pelo registo civil e/ou Igreja.
Lobolo que, depois de resistir à sua proibição pelo poder político monolítico de inspiração marxista, logo a seguir à conquista da independência nacional, surge hoje como uma instituição forte.
Nesses anos de bravura revolucionária, o poder político associava o lobolo, a mutilação genital feminina e o casamento precoce a práticas nefastas contrárias aos processos de Emancipação da Mulher e de afirmação da Revolução.
No lobolo, um rito que suplanta o casamento formalizado pelo Estado herdado da cultura judaico-cristã do colonialismo, a família do noivo oferece à da jovem uma série de bens materiais.
Entre esses bens listados pela família da jovem, destacam-se capulanas, outros vestuários, bebidas, objectos simbólicos, como bengalas, e uma quantia em dinheiro, numa espécie de dote.
O rosto e os gestos do jovem pretendente, à beira dos 30 anos, filho de dois intelectuais muito conhecidos e reconhecidos na sociedade, não conseguiam driblar a ansiedade que o fazia andar de um lado para o outro da sala, exibindo, sem querer, o seu impecável e moderno fato azul petróleo de três peças: calça, colete e blêizer.
Nessa sociedade patriarcal, a escolha para liderar a comitiva da família do jovem recaiu sobre a irmã mais velha do pai, coadjuvada pelo irmão mais velho da mãe, numa espécie de equilíbrio.
Por se tratar de uma família cristã, a reunião começa com uma oração, para pedir ajuda, orientação e bênção divinas para a viagem e o desenrolar da cerimónia de apresentação.
Acertada a estratégia, definidas as propostas a apresentar, datas para o lobolo, seguido do matrimónio realizado pelo Estado, a comitiva parte da capital, rumo à segunda cidade da província de Maputo, Matola, ao encontro da família da jovem, deixando em casa os pais do jovem, primos e outros familiares.
No início da apresentação, os pais da noiva nunca estão presentes, e a delegação visitante é normalmente constituída por dois casais de tios ou, na ausência destes, primos mais velhos do noivo.
Os pais da jovem, também do Sul, mesmo tendo vivido muitos anos como diaspóricos, na Europa, onde a candidata crescera, não prescindem do cumprimento de todos os rituais deste rito de passagem.
Na Matola, a receber a comitiva visitante, estava um grupo equivalente, sem os pais da noiva que, com outros familiares próximos, ficaram num compartimento diferente da casa, aguardando pelo desenrolar do processo.
A cerimónia começou com os visitantes a esclarecerem o motivo de tão ilustre deslocação, falando em nome do pretendente e explicando o grau de parentesco entre os membros da comitiva.
Terminada a conversa, de agrado para as duas partes, os pais e restantes familiares da noiva foram chamados à sala e apresentados aos visitantes.
Em seguida, depois de todo esse ritual e certificado de que tudo correra bem, o jovem foi convidado a entrar, sendo recebido à porta pela namorada, num dos momentos mais altos da cerimónia.
A jovem, respondendo às perguntas da sua família, confirma que o indivíduo acabado de entrar é seu namorado, e nesse instante é feita a declaração verbal de aceitação, formalização do noivado.
Com isso, chega outro momento marcante da cerimónia, a intervenção do noivo, até então em silêncio, para agradecer por ter sido aceite pela família da sua amada e comprometer-se a respeitar os compromissos ali firmados entre as famílias.
Nesta altura, o jovem passa, então a ter o estatuto de mukwaxi, namorado oficial, mas sem quaisquer direitos perante a família da noiva, porque ainda não lobolou.
Depois do discurso do novo mukwaxi, seguiu-se a refeição feita com a preocupação de terminar ainda dia, porque, de acordo com as normas desse rito, a delegação visitante deve partir de volta antes do pôr-do-sol.
A comitiva regressa à casa de partida, onde a família, que lá ficara com os pais do jovem (mãe e o tio que é pai substituto), aguardava com ansiedade os resultados da missão.
Já em casa, depois de outra oração, a chefe dos emissários, auxiliada pelo seu coadjutor, faz em língua nacional changana e em português um relato pormenorizado da sua missão, incluindo detalhes ínfimos.
Ouvida a descrição dos acontecimentos, aliviados, o pai e a mãe do jovem agradecem o trabalho da comitiva e os familiares cumprimentam o novo mukwaxi.
Em famílias rigorosas do sul de Moçambique, sem o lobolo o homem, mesmo tendo casado oficialmente, continua a ser um mukwaxi, olhado com desconfiança pelos parentes da sua mulher e vedado a certos direitos familiares.
Nessa tradição, o primeiro genro, considerado genro mais velho, é responsável por algumas das decisões e posicionamentos da família, em assuntos de natureza diversa.
Em caso desse genro, estar na condição de mukwaxi é automaticamente ultrapassado por outro que tenha cumprido com todos os rituais do casamento, malgrado a idade.
O mukwaxi pode ser impedido de participar em ritos de iniciação ou de passagem envolvendo os próprios filhos, em determinadas cerimónias sociais, independentemente da sua classe e condição financeira. É tido como um intruso.
Se na língua angolana Kimbundu, mukwaxi quer dizer natural de determinado espaço/terra, já em changana significa homem desapossado da sua condição de membro de plenos direitos de determinado grupo social.
As duas palavras homónimas, escritas com a mesma grafia, comportam significados diametralmente opostos, incluindo em termos afectivos e emocionais.
Em kimbundu, mukwaxi é afirmação identitária, já em changana traduz um "fora-da-lei", violador das normas do grupo social, alvo de censura e de sanções.
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