Provavelmente, como chegou a ser, depois de a 16 de Maio terem sido retomadas as conversações directas entre russos e ucranianos, discutido em alguns canais fora dos media mainstream, algo mais se passava além da gritaria para o palco mediático.

E agora, segundo a russa RT, o canal de televisão do serviço internacional de Moscovo, citando uma fonte anónima do círculo próximo às negociações, a reunião que esta segunda-feira, 02, teve lugar em Istambul, não foi um fiasco total, como oficialmente foi percepcionado ao ser anunciado que tinha demorado apenas uma hora.

Durou muito mais, mas foi por detrás do protocolo oficial, com os lideres das duas delegações, o russo Vladimir Mendinsky (na foto), conselheiro do Presidente Vladimir Putin, e Rustem Umerov, ministro da Defesa ucraniano, a manterem um encontro secreto para falar sem pressão sobre o mapa de acção para conduzir futuras negociações.

Depois do encontro formal, Mendinsky e Umerov sentaram-se para falar e, segundo a RT, esse tempo foi aproveitado para "preparar os próximos passos" e permitiu retirar abrasividade ao momento claramente marcado por quase duas semanas de violentos ataques entre os dois contendores.

Alguns canais nas redes sociais estavam intensamente a discutir a possibilidade do ataque ucraniano às bases russas, com a destruição de vários aviões, como os bombardeiros estratégicos TU-95 e TU-22, poder fazer descarrilar as negociações, mas esta conversa secreta terá reduzido as animosidades e mantido a engrenagem negocial a funcionar.

Esta conversa durou, segundo a fonte da RT, mais de duas horas e meia, e foi essencial para que russos e ucranianos tivessem conseguido evitar uma ruptura agressiva e comprometedora para novas rondas negociais, que a reunião formal de uma hora não tinha garantido.

Para não sair de Istambul sem nenhum resultado, mesmo que de essencial tal não tenha acontecido, terá sido nesta conversa à margem do programa oficial que Moscovo e Kiev definiram algumas medidas, como uma troca alargada de prisioneiros e de corpos de combatentes mortos durante os combates.

Uma novidade nesta ronda negocial foi a troca de prisioneiros de guerra feridos ou doentes e soldados com menos de 25 anos, o que é uma novidade que pode ser reveladora de uma disponibilidade para desbravar novas perspectivas.

Mas, já oficialmente, Moscovo e Kiev ficaram de ir estudar as propostas da outra parte para conduzir estes esforços a um final feliz, que será, inicialmente, um cessar-fogo, e depois um acordo de Paz, voltando, ao que tudo indica, a conversar ainda durante o mês de Junho.

Todavia, o palco do teatro mediático não desapareceu por detrás dos panos, porque, numa tirada agreste, o Presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, chamou os negociadores russos de "idiotas" devido a uma proposta de Medinsky sobre tréguas de curta duração para que ambos os lados possam recolher os cadáveres de combatentes caídos nas trincheiras.

Zelensky considera que esta proposta, que a parte russa justifica para garantir funerais apropriados e evitar doenças, foi "feita por idiotas que não percebem que as tréguas devem servir para salvar vidas e não para levar mortos para casa".

O que querem os ucranianos? E os russos?

A proposta de memorando ucraniana compreende, à cabeça, um cessar-fogo de 30 dias incondicional para nesse período avançar nas negociações para um acordo de paz, que os russos recusam alegado que Kiev apenas quer tempo para se rearmar e reorganizar na linha da frente.

Kiev quer ainda a devolução de centenas de crianças levadas pelos russos das zonas de combate na Ucrânia para a Rússia, alegando que foi para as proteger, sendo que, agora se soube, são cerca de 400, quando inicialmente Zelensky falava de largos milhares e isso serviu para o Tribunal Penal Internacional acusar Puti de crimes de guerra.

Ainda dentro das propostas ucranianas está a organização de um encontro entre os dois Presidentes, Zelensky e Putin, com a presença do norte-americano Donald Trump, o que Moscovo tem descartado para já, recorrendo a uma teia de argumentos que passam pela ideia de que tal só será possível depois de negociações entre as delegações que abordem a "raiz do conflito".

À parte destas novidades, a Ucrânia mantém sem alterações relevantes as exigências iniciais que são a saída dos territórios ocupados de todas as forças russas, o envio de forças ocidentais para o terreno de forma a impedir futuras agressões russas e a punição de Moscovo com o custo da reconstrução do país.

Além disso, Kiev não desiste de aderir à NATO, mesmo que num prazo alargado, e quer garantida a entrada na União Europeia num curto prazo, ao que admite responder com a aceitação do levantamento de algumas sanções à Rússia, embora, para já, peça que sejam aplicadas novos pacotes sancionatórios contra os russos.

Entretanto, a Rússia, também não se afasta do que se sabe há muitos das suas exigências na elaboração da proposta de memorando apresentada aos ucranianos, nomeadamente a questão da discussão sobre a raiz e as causas profundas para o conflito russo-ucraniano/ocidental.

Essas causas mais profundas são claramente a questão da adesão à NATO, o avanço desta organização militar ocidental para leste, enquanto no imediato, Moscovo mantém a exigência de que Kiev, e a comunidade internacional, reconheça a soberania russa das cinco regiões ocupadas desde 2014 (Crimeia) e Lugansk, Donetsk, Zaporizhia e Kherson, em 2022 e retire as suas forças das áreas que nelas ainda não controla.

Além disso, o Kremlin não abdica de garantir a neutralidade ucraniana, fora da NATO definitivamente, a recusa sem dúvidas ao desenvolvimento de armas nucleares, o desenho de um mapa para terminar as hostilidades através do reconhecimento internacional desse tratado, acompanhado de um acordo global de segurança para a Europa.

E acrescenta, entre outros pontos, a necessidade de desmilitarização e da desnazificação da Ucrânia, abandonar posições militares junto à fronteira russa, a imposição de limites às suas forças armadas, o reconhecimento das singularidades da cultura russa na Ucrânia, como a língua e a religião...

A realização de eleições é ainda outra exigência russa, alegando que quaisquer tratados no futuro terão de ser assinados por pessoas com legitimidade total, o que actualmente não sucede, na perspectiva russa, porque Zelensky deveria ter realizado eleições em Maio de 2024 e não o fez graças à Lei Marcial em vigor.

No entanto, estas posições extremadas não são novidade e não era de esperar outra coisa nesta segunda ronda de negociações oficiais, mas ao se ter ficado a saber que Kiev e Moscovo se entenderam a ponto de estarem a decorrer negociações secretas, isso coloca novas possibilidades no horizonte.

E uma das razões é que ucranianos e russos têm uma ligação cultural e de sangue centenária, partilham valores religiosos e culturais eslavos, e um entendimento terá menos sobressaltos sem a pressão ocidental sobre Kiev, como, de resto, se sabe que sucedeu em Abril de 2022, quando Boris Johnson, primeiro-ministro britânico, respaldado pelos EUA, fez implodir as negociações russo-ucranianas de Istambul.

Nessa sua entrada circense no palco do conflito, Johnson empurrou Zelesky para fora das negociações com Moscovo prometendo-lhe apoio incondicional e ilimitado por tempo que for preciso, tanto militar como financeiro, uma entrada acelerada na NATO e facilidades para aderir à União Europeia...

O que resultou em mais de três anos de guerra, centenas de milhares de mortos e feridos de um e do outro lado, a destruição de grande parte do leste ucraniano... e sem que seja evidente que a maior guerra na Europa desde 1945 possa terminar em breve.