... mas era apenas o início de uma tragédia em larga escala (ver links em baixo nesta página), que ganhou contornos de genocídio com a resposta avassaladora das forças israelitas sobre a Faixa de Gaza, que o Secretário-Geral das Nações Unidas, António Guterres, voltou, para marcar esta desgraçada efeméride, a usar as palavras mais fortes: "Israel transformou Gaza num cemitério de crianças".

Um mês depois ainda há muito para apurar e perceber, desde logo a estupefacção geral com a fragilidade demonstrada pelos serviços de segurança israelitas, considerados à prova de falhas, como a Mossad, a "secreta" do país para as operações especiais e recolha de informação além fronteiras, o Shin Bet, a intelligentsia interna, com olhos em cada esquina de Gaza, da Cisjordânia e de Jerusalém Oriental, ou a menos exposta mas não menos eficaz, Aman, a secreta militar.

Como falharam estes serviços na antecipação, ou, pelo menos, na resposta ao minuto ao ataque dos combatentes das Brigadas Al Qassam, o braço armado do Hamas, que esventrou com retroescavadoras os muros de betão armado que enclausuram Gaza, fizeram voar drones armadilhados para explodir as torres de vigilância electrónica ao longo da fronteira, e avançaram com simples aparelhos voadores do tipo asa delta dezenas de quilómetros sobre o sul de Israel onde entraram em dezenas de Kibutz, aldeamentos agrícolas, sem oposição e apanhando tudo e todos desprevenidos?

Só a resposta devastadora das Forças de Defesa de Israel (IDF) sobre Gaza, com um fio contínuo de aviões de guerra a despejar bombas e misseis sobre Gaza, baixou o som até ao ponto de ficar inaudível a dúvida geral sobre a eventual premeditação do Governo de Benjamin Netanyahu deste tão audaz quanto estranho golpe do Hamas.

Entre as suspeitas terraplanadas à força de bombas largadas por dezenas de aviões de guerra e milhares de peças de artilharia sobre Gaza, surgiu a possibilidade de o primeiro-ministro israelita ter criado internamento o cenário para garantir o sucesso inicial do Hamas e despoletar uma resposta militar que o libertaria da situação politicamente insolúvel em que se encontrava.

Na verdade, Benjamin Netanyahu estava submerso em processos judiciais por suspeita severa de corrupção e peculato e já não estava a conseguir lidar com o carrossel contínuo de manifestações populares gigantescas contra a sua reforma da justiça, que lhe permitiria, se viesse a ser aprovada, controlar o Tribunal Supremo via Parlamento, que o obrigou ao enxovalho de demitir e readmitir ministros devido à fragilidade do Governo que formou à custa da chamada para o Executivo de pequenos partidos radicais de extrema-direita.

Com a retoma devastadora de um conflito tão antigo como é a idade da criação do Estado de Israel, em 1948, transformando a Faixa de Gaza num campo de morte e destruição, Netanyahu apagou dos ecrãs das tvs e dos sites de notícias o rasto da sua fragilidade política, com os media a focarem as suas atenções na preparação para aquilo a que chamou a "grande operação terrestre" de limpeza do Hamas em Gaza.

Com efeito, milhares de carros de combate, milhares de peças de artilharia, mais de 300 mil soldados, ergueram, na fronteira norte de Gaza, uma gigantesca máquina de guerra que dia após dia engrossava em dimensão e no tom de ameaça de entrada no território do Hamas, a Cidade de Gaza, a capital deste território com apenas 365 kms2 e mais de 2,3 milhões de habitantes, o que representa a mais densa concentração populacional do mundo, mais de 6500 por km2.

"Cemitério de crianças"

Depois de um primeiro momento de séria consternação pelos 1400 israelitas mortos e mais de 2 mil feridos vítimas do raid terrorista dos combatentes do Hamas e das mais de duas centenas de reféns, chegados aos media internacionais em imagens de brutal terror espalhado em várias localidades do sul de Israel, rapidamente o mundo começou a mudar o olhar sobre este regressado conflito às televisões de todo o mundo, quando a destruição nos Kibutz começaram a ser partilhadas na prioridade mediática com as imagens de milhares de crianças mortas e estropiadas nos escombros de Gaza.

A posição de Israel começou a ser não apenas beliscada, mas sim destruída como país que sofreu a brutalidade do terror islâmico do Hamas passando à origem do mal mais excruciante que se abateu sobre uma população indefesa em Gaza que apenas comete o crime de partilhar como espaço habitacional o mesmo território do Hamas.

Isso, simplesmente porque não há para onde ir naquela exígua língua de terra de 40 kms de extensão por nove de largura entalada entre o Mar Mediterrâneo a oeste, o Egipto a sul e Israel a norte e a leste, onde todas as fronteiras estão fechadas a sete chaves, o que levou a que este território ficasse conhecido como a maior prisão a céu aberto do mundo.

As imagens que chegam ao resto do mundo também pelas agências de notícias, mas, essencialmente, pela televisão Al Jazeera, que mantém uma cobertura ininterrupta do terror em Gaza, onde sobressaem frames de insuportável sofrimento com crianças esmagadas em toneladas de escombros, hospitais com gente despejada pelo chão que morre antes de receber qualquer assistência devido à incapacidade de resposta para tamanha mortandade, levaram o Secretário-Geral da ONU a voltar a usar as palavras mais duras para descrever este cenário dantesco.

António Guterres, que já tinha desafiado a narrativa israelita, chamando a atenção para o facto deste conflito, já conhecido como a guerra do 07 de Outubro, não ter saído "do vácuo" porque tem por detrás uma "ocupação israelita da Palestina" de décadas, voltou agora a tocar com dedos de sal numa ferida aberta: "Israel transformou Gaza num cemitério de crianças", parte de um "pesadelo" que molda uma "crise da Humanidade".

O chefe das Nações Unidas reverberou ainda nas suas palavras alguns dados que permitem comparar este conflito com outros, marcando a sua extraordinária exclusividade sanguinolenta: já morreram em quatro semanas mais jornalistas e funcionários da ONU que em qualquer outro conflito em todo o mundo no meso espaço temporal.

Na sede das Nações Unidas (ONU), em Nova Iorque, dando ao momento a solenidade oficial da organização que dirige, António Guterres disse ainda estar esmagado pelas "claras violações do direito humanitário internacional" num conflito que "está a abalar o mundo".

"As Forças de Defesa de Israel, com os seus bombardeamentos, estão a atingir civis, hospitais, campos de refugiados, mesquitas, igrejas e instalações das Nações Unidas, ali ninguém está seguro", lamentou.

Só na Agência Nações Unidas para a Assistência aos Refugiados da Palestina (UNRWA), morreram 88 trabalhadores foram mortos em Gaza desde 08 de Outubro, e jornalistas, embora este número esteja ainda por definir, já pereceram pelo menos 40, a maior parte repórteres locais a trabalhar para canais de televisão palestinianos, mas também cerca de uma dezena de jornalistas de media internacionais, como a Al Jazeera ou a Reuters.

Guterres, que nunca deixou de sublinhara sua veemente condenação do Hamas pelos ataques terroristas de 07 de Outubro, tem vindo a acompanhar, com cada vez mais intensidade, essa condenação inequívoca com uma não menos robusta condenação dos actos israelitas, insistindo igualmente na urgência de um cessar-fogo.

O respaldo americano aos planos de Netanyhau

A resposta israelita à postura do chefe da ONU, que não pode ser separada das manifestações repetidas nas ruas das grandes capitais mundiais, no ocidente e no universo árabe/muçulmano, com milhões de pessoas a condenarem os excessos israelitas, foi agressiva e célere, especialmente através do seu ministro dos Negócios Estrangeiros, Eli Cohen, que afirmou que Guterres "devia ter vergonha do seu discurso".

Mas Cohen já tinha dito que Guterres estava a braquear as acções terroristas do Hamas e o seu embaixador na ONU, Gilard Erdan, de forma agressiva, pediu a demissão do português, procurando, num truque mediático mal conseguido, colar o ataque do Hamas de 07 de Outubro ao Holocausto nazi, colocando uma estrela de David amarela na lapela do casado simulando a marca distintiva imposta pelos nazis aos judeus durante a II Guerra Mundial.

A tudo isto, Israel tem respondido igualmente com um não rotundo aos repetidos pedidos de abertura de corredores humanitários, com um cessar-fogo temporário, ou, na nova linguagem nascida deste conflito, pausa humanitária, de forma a permitir a chegada de ajuda à sufocada população em Gaza que está a receber quase nenhuma ajuda, porque os pouco mais de 150 camiões que o Egipto e Isarel deixaram entrar no território com alimentos e medicamentos, são, no entender de Guterres, "uma gota de ajuda num oceano de carências".

Porque, na perspectiva do Governo de Benjamin Netanyahu, a assimétrica resposta de Telavive em Gaza, onde já morreram mais de 10 mil pessoas, entre estes 4500 crianças, 35 mil feridos, na maioria mulheres e crianças, é perfeitamente justificada com o terror espalhado pelos combatentes do Hamas no sul de Israel e vale tudo para livrar o país desta ameaça terrorista por várias décadas.

Apesar da pressão internacional ser enorme, com os media ocidentais a não deixarem de focar a atenção nas questões humanitárias e nas vítimas inocentes das bombas israelitas, os EUA, que voltaram a usar o seu direito de veto no Conselho de Segurança da ONU para impedir uma condenação e a imposição de um cessar-fogo a Israel, mantém-se como a potência protectora de Netanyhau, colocando uma força naval gigantesca, com dois porta-aviões, dezenas de navios de apoio, e pelo menos um submarino nuclear, na região.

Isto, ao mesmo tempo que o secretário de Estado Antony Blinken, chefe da diplomacia norte-americana, concluiu esta segunda-feira, 06, o 3º périplo pelo Médio Oriente, em busca de compromissos regionais que permitam evitar o alastramento deste conflito de Gaza para a região de onde sai 40% do petróleo consumido em todo o mundo, diariamente, sem corresponder às exigências dos seus interlocutores, árabes e muçulanos, de impor um cessar-fogo a Israel, sendo, como é o caso, Washington a única capital no mundo que pode obrigar Telavive a aceitá-lo.

Uma janela para o futuro

Quando se cumpre um mês de guerra, e quando as IDF têm a Cidade de Gaza cercada, antecâmara para a previamente anunciada invasão terrestre do "habitat" do Hamas, as chancelarias de todo o mundo procuram responder às questões que se impõem: este conflito vai alastrar? Quem vai tomar conta de Gaza no futuro?

Se o conflito vai alastrar, a maioria dos analistas admitem agora que as potências regionais que poderiam alimentar essa fornalha para fora de Gaza, como o Irão e a Síria, não parecem querer, apesar da retórica ameaçadora, projectar a faísca do Hamas para o barril de pólvora que é o Médio Oriente, como ficou claro no esperado com ansiedade discurso do chefe do Hezbollah, Hassan Nasrallah, vista como a voz do Irão no sul do Líbano, ou pela ausência de "calor" na resposta da Síria e do Irão aos ataques de Israel aos aeroportos de Damasco e Alepo.

Mas há dados preocupantes, como as recentes declarações da rainha da Jordânia, Rania Al Abdullah, onde esta defende, em entrevista à CNN International, a ideia de que um cessar-fogo tem de ser imposto a Israel porque a morte de civis em tão grande número não é acidental, alegando um propósito neste flagelo, o que é relevante sabendo-se que a soberana jordana é comummente vista como a voz dos países moderados do Médio Oriente que, devido a razões políticas e tratados com os EUA e com Israel, não se expressam de viva voz

Ou ainda, que é o mais curioso e perigoso, o intenso trafego diplomático entre o Irão e a Arábia Saudita, com deslocações de alto nível entre um e outro país, e, agora, com a anunciada deslocação do Presidente iraniano, Ebrahim Raisi, a Riade para integrar a Cimeira da Organização Islâmica para a Cooperação (OIC), no próximo dia 12 do Mês corrente, Novembro.

Esta visita, a primeira deste nível, entre os dois países após o reatar das relações diplomáticas há escassos meses, por intermediação russa e chinesa, ao fim de décadas onde Riade e Teerão eram dois polos de inimizade refulgente, tem um claro significado no contexto do actual conflito.

É assim porque permite perscrutar, pelo menos, uma coincidência de ponto de vista de Riade e Teerão sobre o contexto global da crise em Gaza, mas pode ser mais que isso e juntar as duas maiores potências militares regionais numa frente anti-Israel à qual se pode agregar a Turquia, como o faz adivinhar a posição inequivocamente pró-palestina do Presidente Recep Erdogan, que na segunda-feira, primou por nem sequer permitir uma audiência a Antony Blinken na sua visita a Ancara, e do igualmente intenso, para o que é habitual, vai e vem diplomático entre a Turquia e o Irão, mas também com a Arábia Saudita.

O que faz mover o mundo árabe/islâmico é a solidariedade entre muçulmanos em primeira linha, mas é também uma forma de antecipar e evitar que Israel venha a ocupar a Faixa de Gaza, como faz com a Cisjordânia e Jerusalém Oriental, no pós conflito com o Hamas, onde se pode, apesar de ter de pagar um elevado preço em vidas dos seus solados, adivinhar uma vitória de Israel clara e relativamente rápida, se não houver um alastramento regional com a abertura de novas frentes de guerra através do Hezbollah e da Jiahd Islâmica, a partir do Líbano, da Síria e da Jordânia, que são territórios com fronteira com Israel a norte e leste, e com terras ocupadas pelo Estado hebreu há décadas.

Isto é não apenas um risco como é uma promessa do próprio primeiro-ministro israelita, que disse publicamente ser uma forte possibilidade Israel ficar a gerir a questão da segurança em Gaza por um longo período, que Netanyahu define como "indefinidamente no tempo" para garantir que não volta a acontecer um 07 de Outubro.

Esta posição do chefe do Governo em Telavive contrasta claramente com o que lhe foi dito pelo Presidente norte-americano Joe Biden, o seu maior aliado, de que tal opção seria um "erro crasso", demonstrando assim que Benjamin Netanyahu não teme a retórica de Washington, onde sabe que os democratas estão entalados entre a ausência de alternativas a um apoio total e sem entraves a Israel porque os republicanos de Donald Trump já disseram que o que está a ser feito para ajudar o aliado no Médio Oriente ainda é pouco.