As tropas governamentais, leais ao Governo de Acordo Nacional (GAN), do primeiro-ministro, Fayez al-Sarraj,acabam de conseguir empurrar as forças do Exército Nacional da Líbia (ENL), chefiado pelo general Khalifa Haftar, antigo oficial de Muammar Khaddafi, da sua base aérea de al-Watiya, a pouco menos de 100 quilómetros de Trípoli, um ponto de referência essencial para os violentos ataques que o rebelde mantinha em permanência sobre a capital e sede do Governo.

Este sucesso do GAN, que conta com o apoio claro e significativo da Turquia, em meios militares e conselheiros de guerra, bem como financeiros, de forma a garantir a Ancara o acesso aos recém-descobertos campos de gás natural no Mediterrâneo sob jurisdição da Líbia, demonstra que o assalto-relâmpago iniciado em Abril do ano passado pelo ENL, e que, aparentemente, estava a ser bem-sucedido, a ponto de terem surgido notícias do iminente colapso de Fayez al-Sarraj, afinal, não está a correr tão bem e é agora o Governo de Trípoli que aparenta ter a iniciativa de contra-atacar.

Quando o país, tal como os vizinhos Egipto, Argélia e Marrocos, está entre os mais flagelados pela pandemia da Covid-19 em África, o que obriga o GAN a lutar em duas frentes, esta vitória sobre o general rebelde poderá ser determinante para o futuro deste prolongado conflito líbio, onde algumas potências regionais se envolveram oficiosamente ao lado dos rebeldes, enquanto, com Fayez al-Farraj, de 59 anos, está a legitimidade de ter o reconhecimento internacional.

Segundo relatos das agências, do lado de Farraj está a Itália, oficiosamente, e a Turquia, de forma aberta, enquanto com Haftar está a França e, aparentemente os EUA e a Rússia, bem como os EAU e o Egipto, estando, agora, todos eles obrigados a repensar as suas estratégias por causa deste contra-ataque que pode mudar o curso deste conflito.

Recorde-se que o ENL, de Khalifa Haftar, antigo oficial de Muammar Khaddafi e que com ele esteve até 1987, ano em que se desentendeu com o "coronel", partindo então para os Estados Unidos, lançou em Abril um vigoroso ataque de larga escala para controlar a capital do país, Tripoli, e assumir as rédeas do Governo.

O general Khalifa Haftar foi um dos militares que acompanhava o antigo líder líbio, Muammar Kaddafi, quando este tomou o poder pela força, em 1969, e está agora à frente de um forte dispositivo militar que procura derrubar pela força das armas o Governo líbio que a comunidade internacional - ONU - reconhece como legítimo sucessor do regime deposto em 2011.

Avanço e recuo em 12 meses

Há um ano, Haftar, de 75 anos, com o seu ENL, depois de ter conquistado, a partir de Bangazi, uma vasta área da Líbia, fundeando forças em torno de Tripoli, capital do país e sede do Governo de Acordo Nacional, tentava um derradeiro ataque à capital, tendo, então, estado quase dentro da cidade, mas a decisão da Turquia entrar em força neste conflito, acabou por ser fundamental para reequilibrar as forças no terreno.

Sarraj acusa Haftar de tentar liderar um golpe com o apoio do Egipto e dos Emirados Árabes Unidos, numa ofensiva alicerçada em forças bem armadas, incluindo aviões de combate, com os quais efectuou múltiplos ataque ao único aeroporto do país com condições de ter um serviço internacional.

Apesar dos apelos intensos das organizações internacionais, com o Secretário-Geral da ONU, António Guterres a sair amiúde em defesa de "tréguas imediatas" para dar espaço útil ao diálogo entre os beligerantes, a situação no terreno, segundo os recentes relatos das agências de notícias internacionais, não parecem estar encaminhados para o fim das hostilidades.

Em causa, como admitem vários analistas internacionais, está claramente o controlo das 9ªs maiores reservas de petróleo do mundo, com cerca de 50 mil milhões de barris confirmados, mais que a Nigéria e Angola, que são os maiores produtores actuais em África.

Este país do norte de África vive desde 2011 uma situação de latente guerra civil, com diversas facções em permanente combate por territórios, especialmente aqueles onde estão localizadas as infra-estruturas petrolíferas, ou o aeroporto de Mitiga, em Tripoli, cujos voos são suspensos sempre que ocorrem ataques mais intensos.

Apesar de a ONU reconhecer apenas como Governo legítimo da Líbia o GAN, a verdade é que desde 2011 que o país está dividido por duas forças opostas e em duas distintas regiões, com controlo em Tobruque, (afecta a Haftar) e em Tripoli, sob domínio do primeiro-ministro Sarraj.

Com o recrudescer dos combates, milhares de pessoas optaram por fugir da região de Tripoli e aumenta o risco de a Europa ser, de novo, o destino mais seguro para aqueles que lá conseguirem chegar para escapar a mais uma guerra que pode resvalar para mais uma violenta e total guerra civil.

Os perigos ao virar da esquina

Alguns analistas, embora coloquem este conflito num patamar onde reinam os interesses internacionais, como, por exemplo, o apoio da França a Haftar e da Itália a Sarraj, sempre com as monstruosas reservas de petróleo debaixo de olho, admitem que por detrás da acção do antigo oficial de Kaddafi está uma vontade de restaurar a ordem perdida e acabar com o caos.

Para já, sabe-se que Haftar, que passou vários anos nos EUA depois de se afastar de Kaddafi, pretende ser comandante geral das forças militares líbias, a partir de onde poderia facilmente exercer a sua influência e controlo do Governo e evitar que o radicalismo islâmico, a que se opõe, ganhe terreno no território líbio.

O que pode estar em causa para além do controlo de território, e se o actual conflito degenerar mesmo para uma guerra civil, é descrito por alguns analistas como a grande machadada na segurança do Mediterrâneo e uma seta apontada à segurança da Europa, com eventuais implicações em todo o norte de África e no Médio Oriente.

Se as "primaveras árabes" abriram caminho à democracia em países como a Tunísia e tentativas de fazer esse caminho no Egipto, ou na Síria, o triunfo de um general na Líbia pode abrir a porta das traseiras para o regresso dos regimes de ferro em alguns destes Estados.

Para já, é certo que o frágil governo forjado a tenazes pelas Nações Unidas, sob um chapéu artificialmente representativo de todo o país - que não corresponde à realidade como se vê - deixou de poder ser apontado como cara do Estado líbio tendo em conta que mais de metade do país está agora sob domínio do general Haftar.

O curso deste conflito mudou claramente quando o Parlamento da Turquia votou, em Janeiro, favoravelmente uma lei que permite ao Governo de Tayyp Erdogan enviar forças militares para a Líbia com o objectivo de ajudar o Governo reconhecido pela ONU, dando corpo legal a uma situação que já estava a suceder no terreno embora não reconhecida oficialmente.

Com esta decisão, e tendo em conta que a Turquia não esconde as suas críticas a países como o Egipto e os Emirados Árabes Unidos por apoiarem abertamente o general Khalifa Aftar, Ancara deu um passo claro rumo a uma situação nova em África, o que levou ao surgimento imediato de reacções negativas dos países europeus vizinhos, como o Chipre, Malta, a Grécia, entre outros.

Para piorar a situação, o general Khalifa tem ainda o apoio, denunciado por vários organismos internacionais mas não reconhecido oficialmente, de países como o Reino Unido, os EUA ou ainda a Rússia, através do envio de mercenários para a linha da frente.

Recorde-se que a Turquia tem um dos maiores e mais bem equipados exércitos em todo o mundo, sendo o mais numeroso dentro dos países da Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO-OTAN).

O caos desde que Khaddafi caiu

A Líbia está em situação de caos político e militar deste que o histórico líder Muammar Khaddafi foi deposto e abatido num contexto de revolta popular com o apoio directo de forças ocidentais, como a França, os EUA e o Reino Unido, há cerca de uma década, em 2011.

A Líbia é um estratégico país do norte de África, que fica próxima da Europa, por onde milhares de migrantes ilegais alcançam as costas de Itália e Grécia, sendo ainda um importante produtor de petróleo no seio da OPEP, onde também está Angola, e geograficamente um "tampão" estratégico entre a África subsaariana e o norte do continente, o Mediterrâneo e o Médio Oriente.

O Egipto já apelou à ONU para analisar esta situação que pode, avança o Cairo, colocar toda a região do Mediterrâneo em polvorosa.

E, agora, com o aparente recuo das forças de Haftar, o Cairo poderá optar por um envolvimento mais empenhado, o que, tendo em conta o posicionamento turco, alarga a base para um aumento de escala nesta guerra sem fim no horizonte.