Na intervenção que fez a propósito das comemorações do 60º aniversário da independência da RDC, o Presidente Tshisekedi aproveitou para dirigir as baterias contra aquilo que mais marcou pela negativa as seis décadas de existência do mais complexo e periclitante pais da África Central - Região dos Grandes Lagos -, que partilha com Angola: a impunidade e a corrupção no seio dos sucessivos governos de Kinshasa.

Este discurso, deixando claro que não foi escrito ignorando o actual contexto, como o Novo Jornal noticiou nos últimos dias, aqui e aqui, foi lido na segunda-feira, véspera da data oficial da independência, quando o Congo atravessa a primeira crise séria no seio da coligação de Governo composta pela Frente Comum do Congo (FCC), do antigo Presidente Joseph Kabila, que obteve a maioria dos votos, nas eleições gerais de 2018, para a eleição de deputados, e a União para a Democracia e Progresso Social (UDPS), de Félix Tshisekedi, que ficou em segundo lugar.

A crise governativa resulta de um diferendo interno sobre uma reforma do sistema judicial proposta pela FCC, partido que Kabila manobra de fora, a que a UDPS se opõe porque entende que a intenção dos homens do ex-Presidente no Governo é atribuir ao ministro da Justiça, Célestin Tunda, um poder absoluto sobre os magistrados do país.

Por causa deste diferendo, Célestin Tunda, um aliado de Kabila, foi detido no passado Sábado, e libertado horas depois, passando esta detenção a ser o marco de referência na luta de titãs que opõe Kabila a Tshisekedi, com o campo de batalha localizado no Governo de coligação, onde a FCC do ex-Chefe de Estado detém uma larga maioria enquanto a UDPS do actual Presidente tem apenas um terço dos quase 70 elementos do Governo.

Uma das razões subjacentes, como admitem vários observadores da política congolesa, a esta crise é que Joseph Kabila, que governou a RDC de 2001 a 2018, teme que se perder poder e influência no seio do Executivo congolês, poderá ver-se envolvido em processos judiciais inerentes aos seus sucessivos governos, desde logo os vários massacres que tiveram lugar nas ruas das cidades congolesas em protestos contra os seus governos organizados pela UDPS de Félix e Etienne Tsisekedi, este último pai do actual Presidente, que morreu em 2017, depois de uma luta de décadas paa alcáçar o poder que viria depois, em 2018, a ser conseguido pelo seu filho.

Esta situação é de importância vital para Angola porque, a par dos países localizados na fronteira leste da RDC, Uganda, Ruanda e Burundi, Angola está, por razões históricas, na linha da frente das eventuais consequências do aumento de instabilidade interna na RDC por causa da extensa fronteira, mais de 2 mil km"s, que une os dois países.

Palavras fortes de Tshisekedi

"A luta contra a impunidade e contra a corrupção constituem os elementos centrais da minha estratégia, sem os quais toda a esperança de mudança é impossível", disse Félix Tshisekedi no discurso alusivo à celebração dos 60 anos da independência do Congo-Kinshasa.

O Chefe de Estado congolês admitiu mesmo que nestes 60 anos, a classe política nacional "transformou-se numa espécie de máfia e é tempo de mudar esse paradigma se quisermos ser um modelo decente para os jovens, aos quais devem ser entregues condições para que possam erguer um novo Congo e riqueza para distribuir pelo povo".

Sublinhou, como se pode ler no discurso transcrito pela Radio Okapi, a emissora da ONU na RDC, que, "se por uma lado, elegemos a reconciliação nacional como ferramenta para construir o futuro e preservar a paz, a luta contra a impunidade não pode, de forma alguma, transformar-se em vingança nem em caça às bruxas, mas nenhuma reconciliação credível pode surgir se mantivermos as práticas antigas de corrupção e de crime contra o país".

"Em caso nenhum o empenho na paz pode significar impunidade", atirou Félix Tshisekedi, num claro aviso à navegação, ao qual não pode ser alheio o momento que o país vive, e onde sobressai a polémica entre os partidos da coligação e a ameaça de demissão do primeiro-ministro Sylvester Ilunga, outro forte aliado do ex-Presidente Kabila.

Ameaça de desintegração

Mas o Presidente não deixou igualmente de sublinhar o risco sério de desintegração deste imenso país, com mais de 70 milhões de habitantes e um dos mais ricos em recursos naturais do continente africano, apesar da extrema pobreza em que vive a maioria dos seus habitantes.

"Efectivamente, como uma serpente marítima, a ameaça da balcanização (desintegração) atravessou a história destes 60 anos, uma história tumultuosa e intrincada, com a instabilidade instigada a partir do exterior por potências externas e com a cumplicidade de filhos do Congo e dos seus vizinhos", atirou.

Acrescentando que a sua visão e vontade pass apor que essas ameaças externas produzam internamente o fortalecimento dos "laços históricos e o sentimento patriótico entre os filhos da grande Nação congolesa", sublinhando igualmente a urgência de "combater todos aqueles que internamente alimentam o tribalismo e o ódio" aos quais promete um "combate total e a sua melhor energia na defesa da vida colectiva".

O lamento histórico do rei dos belgas

O Rei da Bélgica, Filipe, no contexto de comemorações dos 60 anos da independência do Congo, enviou uma carta ao Presidente da RDC onde expressa os seus mais "profundos lamentos" pela violência e brutalidade infligidas sobre o povo congolês durante a época colonial.

Num documento histórico, o Rei Filipe, na primeira abordagem oficial sobre este assunto, demonstrou arrependimento histórico pelo passado colonial do seu país, nomeadamente o exercido pelo seu antepassado, Leopold II, que tinha o Congo como uma coutada privada sua.

De acordo com distintas fontes, o legado de Leopod II, que reinou de 1865 a 1909, ano em que morreu, cujas estátuas estão a ser destruídas um pouco por todo o lado no âmbito do movimento global despoletado pela morte do afro-descendente norte-americano, George Floyd, e pelo movimento "Black Lives Matter", é de mais de 10 milhões de mortos numa período de brutal exploração dos recursos do vasto território congolês.