Os tempos eram outros. O basquetebol feminino ainda era uma aventura, uma travessia feita de improvisos e coragem. Mas Regina trazia dentro de si algo raro - uma leveza que desmentia a força. Jogava como quem dança, lançava como quem reza. Com o Benfica do Lubango, tornou-se a primeira grande estrela do basquetebol angolano, campeã de Angola e de Portugal, MVP do Nacional de 1963 e símbolo de uma geração que descobriu que o corpo também podia ser liberdade. Chamavam-lhe "a máquina de fazer pontos", mais do que pontos, ela fazia caminho. Foi a "Senhora Basquetebol" de Angola, num tempo em que as mulheres ainda precisavam de abrir janelas para respirar.

Décadas depois, noutra latitude e noutro tempo, outra jovem mulher devolve à bola laranja o mesmo brilho que Regina lhe deu. Chama-se Sara Caetano. Tem vinte e dois anos e o sorriso dos que sabem de onde vêm. Capitã dos Quinta dos Lombos, tornou-se uma das figuras mais queridas da comunidade de Carcavelos, onde o clube é mais do que um emblema - é uma família. Mas antes de ser capitã em Portugal, Sara foi, é e será sempre uma formiguinha do Cazenga. Foi ali, entre o pó das ruas, os campos improvisados e o calor do nosso bairro, que aprendeu a cair e se levantar, a lutar sem desistir, a sonhar mesmo quando tudo parecia distante. Forjada no dia-a-dia do Formigueiro, cresceu a transpor barreiras e dificuldades que fariam muitos recuarem, mas que nela apenas acenderam a vontade de vencer. É um produto puro do Cazenga: humilde, trabalhadora, de coração aberto e espírito comunitário.

Quando se observa Sara jogar, há algo de Regina nela. Não apenas na técnica ou na garra, mas na forma de estar. A mesma entrega, a mesma inteligência emocional, a mesma generosidade que faz com que o colectivo pese mais do que o individual. Regina, nos anos 60, era o rosto de um tempo que começava a acreditar na mulher atleta. Sara, hoje, é o rosto de um tempo que precisa de relembrar o que é jogar com alma. Ambas são pontes entre o talento e o compromisso.
Regina jogou em campos de cimento, sob sol intenso, quando o basquetebol era puro entusiasmo. Sara joga em pavilhões modernos, diante de câmaras e redes sociais, num mundo onde o ruído às vezes é maior do que o jogo. Mas há nelas um mesmo silêncio essencial: o instante em que a bola sai das mãos e o mundo parece suspenso, entre o som do drible e o eco da tabela. É ali que se encontram, a menina do Lubango e a menina do Cazenga, separadas pelo tempo, unidas pela paixão.
Há algo de simbólico nessa passagem de testemunho invisível. Regina foi pioneira, abriu veredas onde não havia estrada, enfrentou preconceitos e dores físicas - uma lesão grave encerrou-lhe a carreira cedo demais. Sara surge numa época de novas oportunidades, mas também de novos desafios, em que o profissionalismo exige maturidade precoce e o brilho obriga a um equilíbrio entre o ser e o parecer. E, no entanto, em ambas há a mesma centelha: a convicção de que o basquetebol não é apenas um jogo, é uma forma de se estar no mundo.

Carcavelos, Cazenga e Lubango - três lugares diferentes, unidos por uma mesma emoção. Em todos, há comunidade, há pertença, há o eco de quem joga por amor e não apenas por glória. Quando os adeptos dos Lombos gritam o nome de Sara, talvez sem o saber, celebram também Regina e todas as mulheres que, antes dela, lançaram a bola ao ar para que outras pudessem sonhar. Porque o basquetebol tem essa magia: transforma o passado em presente e faz de cada cesto uma memória.
Se o tempo tivesse um espelho, veríamos de um lado Regina, de tranças e camisola encarnada, em Coimbra, 1963, a erguer um troféu com lágrimas nos olhos. Do outro, Sara, de amarelo e preto, em Carcavelos, sorrindo entre colegas e crianças que a chamam "capitã". Entre as duas, corre um fio invisível - o fio da paixão, do talento e da entrega. E talvez seja isso que explica por que razão, sempre que uma mulher entra em campo com a bola nas mãos, o coração do jogo volta a bater como no primeiro dia.
*Jurista e Presidente do Clube Escola Desportiva Formigas do Cazenga