A autarquia como pessoa colectiva pública

A função administrativa, em Angola, ao nível local, não está confiada somente ao Estado e às entidades dele dependentes. Ao lado da Administração estadual coexistem entidades de pessoas colectivas públicas, compostas por comunidades de pessoas, que através de representantes escolhidos, segundo o princípio democrático, prosseguem interesses próprios, diferenciados dos interesses do Estado. É esta a leitura que deve ser feita ao n.º 1 do artigo 201º da Constituição da República de Angola (CRA), segundo o qual "a Administração Local do Estado é exercida por órgãos desconcentrados da administração central e visa assegurar, a nível local, a realização das atribuições e interesses específicos da administração do Estado na respectiva circunscrição administrativa, sem prejuízo da autonomia do poder local".

Nos termos do n.º 1 do artigo 213º da CRA, a organização democrática do Estado a nível local estrutura-se com base no princípio da descentralização político-administrativa, que compreende a existência de formas organizativas do poder local.

Segundo o n.º 2 do artigo 213º da CRA as formas organizativas do poder local compreendem as autarquias locais, as instituições do poder tradicional e outras modalidades específicas de participação dos cidadãos. Neste caso, quando nos referimos a descentralização administrativa, de substracto territorial, estamos a falar exactamente das autarquias locais. As autarquias locais são pessoas colectivas territoriais (elemento território) correspondentes ao conjunto de residentes em certas circunscrições do território nacional (elemento agregado populacional) e que asseguram a prossecução de interesses específicos resultantes da vizinhança (interesses comuns), mediante órgãos próprios representativos (órgãos representativos) das respectivas populações (artigo 217º n.º 1 CRA).

Nos termos do n.º 2 deste artigo, a organização e o funcionamento, bem como as competências dos órgãos das autarquias locais são regulados por lei, de acordo com o princípio da descentralização administrativa (auto-administração).

Portanto, as autarquias locais não podem ser vistas como sucursais ou agências do Estado e nem são instrumento deste. Elas constituem-se de baixo para cima, ao passo que o Estado se constitui de cima para baixo.

Importância das autarquias locais

A autarquia local é a expressão política organizada da respectiva comunidade local para a realização dos seus interesses próprios, comuns e específicos. A autarquia não se confunde com a comunidade local que representa, assim como o Estado está para a República (Comunidade nacional), também é a organização local (poder local) para a sua comunidade.

O poder local sempre foi a janela para o grito da liberdade das populações e o motor do desenvolvimento dos países, pois este requer um poder local vigoroso. Parte-se do princípio de que o desenvolvimento de um país não pode ficar confinado aos grandes centros, pois se assim for, também esses centros podem ser corroídos pela doença do subdesenvolvimento das demais regiões e sucumbem. Um país é como um corpo em que se pretende que todos os seus membros estejam sãos, já que se um dos membros sofre de alguma doença com ele sofre todo o corpo.

Assim, a saúde, o desenvolvimento e o crescimento harmonioso deve dizer respeito simultaneamente ao todo nacional. Se olharmos para os outros países, veremos que todos os países desenvolvidos do mundo são altamente descentralizados e a sua riqueza assenta precisamente no seu desenvolvimento como um todo, o que não seria possível sem um verdadeiro poder local.

Inconveniência das autarquias locais

O poder local também pode apresentar certos inconvenientes, sobretudo em determinados contextos económicos e sociais da vida de um país. Pode, por exemplo, gerar alguma descoordenação no exercício da função administrativa, abrindo portas ao mau uso do poder público (discricionário) da Administração Pública por pessoas que eventualmente não estejam bem preparadas para o exercer, tal como já nos referimos acima. Aqui a necessidade de se formar quadros capazes de assegurar o bom funcionamento destes entes-públicos ao nível local.

Princípios fundamentais das autarquias locais

Já dissemos que a organização democrática do Estado a nível local estrutura-se com base no princípio da descentralização político-administrativa, tal como vem plasmado na nossa Constituição. Mas, o princípio democrático não é único que está subjacente à estruturação do poder local autárquico. Existem outros princípios do quais enumero inicialmente apenas um:

A) O Princípio da descentralização ou princípio da organização administrativa descentralizada

Segundo este princípio, o exercício das responsabilidades públicas deve pertencer preferencialmente às autoridades mais próximas dos cidadãos. É um dos princípios da Administração Pública e do Direito Administrativo. Diz-se descentralizado o sistema em que a função administrativa esteja confiada não apenas no Estado, mas também em outras pessoas colectivas territoriais. Assim, onde quer que existam autarquias locais, enquanto pessoas colectivas distintas do Estado, e dele juridicamente separadas, diz-se que há descentralização em sentido jurídico.

É importante distinguir a descentralização quanto a forma e aos graus:

I) Quanto à forma, a descentralização pode ser territorial, institucional, associativa ou cultural. A descentralização territorial é a que dá origem à existência de autarquias locais; a descentralização institucional dá origem a existência de institutos públicos e às empresas públicas; a descentralização associativa dá lugar às associações ou fundações e a cultural dá lugar às instituições do poder tradicional. Em sentido estrito e para o caso presente, a descentralização é a territorial;

II) Quanto aos graus, e numa perspectiva jurídica eles podem ser:

Simples atribuição de personalidade jurídica de direito privado: forma meramente embrionária de descentralização privada;

Atribuição de personalidade jurídica de direito público. Aqui, sim, começa verdadeiramente a descentralização administrativa; Além da personalidade jurídica de direito público, atribuição de autonomia administrativa; Além da personalidade jurídica de direito público e da atribuição da autonomia administrativa, atribuição da autonomia financeira; Das três anteriores, atribuição de poderes regulamentares. Alcança-se assim a auto-administração, ou, dito de outro modo, estamos em presença da descentralização administrativa.

Mas a descentralização tem de ser submetida a certos limites, pois a descentralização ilimitada pode degenerar no caos administrativo e na desagregação do Estado, além de que pode provocar atropelos à legalidade, à boa administração e aos direitos dos particulares.

Assim os limites podem ser de três ordens:

I) Limites aos poderes de administração e, portanto, também aos poderes das entidades descentralizadas: delimitação, por lei, das atribuições e competências da autarquia local - limites à quantidade de poderes transferíveis e limites ao exercício de tais poderes pelas entidades descentralizadas; limites à actividade das autarquias que deve ser circunscrita ao princípio da legalidade; limites circunscritos ao respeito dos direitos e interesses legítimos dos particulares;

II) A descentralização administrativa tem de ser estabelecida por lei (não se infere);

III) A terceira ordem de limites tem que ver com a intervenção do Estado na gestão das autarquias locais - que espécie de tutela? (sobre isso falaremos em outra ocasião).

*Estanislau Domingos é advogado, professor universitário e consultor jurídico. Licenciado em Direito/Relações internacionais, tem também uma pós-graduação em Direito Autárquico e Finanças locais, a que junta a frequência do mestrado em Ciências Jurídico-económicas e Desenvolvimento