Compramos os bilhetes na EVA, ali mesmo coladinho ao antigo Bowling, a dois passos do Hospital Militar, e no dia aprazado lá estávamos, bem cedinho, para a nossa viagem rumo ao planalto central. O autocarro cor-de-laranja lá foi, repleto, sem percalços, até ao Wako. Aí, como já havia rumores de actividade bandidesca na região, as autoridades colocaram dois camiões cheio de odepês a escoltar o autocarro. Estava um dia lindo, e nós desfrutávamos a viagem. Cheios de sonhos e ilusões, dávamos livre curso à nossa boa disposição, tudo observando e servindo de motivo para uma boa gargalhada. Um senhor, ou melhor, um camarada que lia, absorto, um livro da Anita, foi o nosso alvo durante uma parte considerável da viagem.
Jogávamos batalha naval, e eis que, do nada, na paisagem gloriosa, numa zona onde o verde e os maciços rochosos típicos daquela bela região preenchiam o cenário, um tiro surpreendeu-nos. A nós e ao motorista do camião da escolta, que começou a ziguezaguear defronte do autocarro, despistando-se. Não sem antes se ouvir uma prolongada rajada de resposta, talvez mais por desorientação que com objectivo definido, vindo do camião descontrolado, enquanto os odepês eram projectados para fora do carroceria sem taipais.
O autocarro parou, e um camarada das FAPLA assumiu as rédeas da situação, mandando toda a gente para fora, e que aplacasse. O que fizemos. O tempo continuava glorioso. Não havia nenhuma nuvem negra que indiciasse a gravidade da situação. O verde continuava verde, e a encher-me os olhos de prazer. As montanhas continuavam nos seus postos, montando uma guarda omnipresente. O Sol continuava a sorrir. E até os pássaros que tinham suspendido o chilrear, surpreendidos, voltaram a entoar o seu canto.
O militar que nos acompanhava tomou rapidamente as providências necessárias, e, depois de acalmar os passageiros, correu para o local onde o camião se despistara, onde nos deparámos com uma situação com vários feridos do acidente, e um morto, que nunca saberemos se do fogo do inimigo, ou de algum companheiro descontrolado. Enquanto ajudávamos a colocar os feridos no camião, vimos o segundo camião passar, com grande parte dos passageiros. Tinham decidido avançar, deixando o grupo que se tinha afastado, onde nos encontrávamos. Finalmente partimos, e a viagem decorreu, sem mais incidentes, a não ser os mecânicos.
O autocarro, provavelmente traumatizado, tinha dificuldade em ultrapassar algumas das ladeiras, que, como sabemos, naquela estrada, são, por vezes, consideráveis. Foi, pois, uma viagem aos soluços. Mas lá chegámos, já de noite, à estação da EVA no Huambo, não longe do Hotel Ruacaná. O pessoal que tinha vindo com o primeiro camião já tinha debandado. E verificamos que a nossa bagagem também...
Fomos ao Hotel, e aí, novo empecilho burocrático esperava-nos: havia quartos, mas o recepcionista não podia permitir-nos a estada sem uma autorização da delegação provincial da hotelaria, que, naturalmente, não estava aberta àquela hora. Dia de emoções. Um braço de ferro acabou por se desenrolar, mas, perante a nossa decisão de dormir nos cadeirões do lobby, e a intervenção de um anjo-da-guarda que, entretanto, apareceu, lá o bom-senso prevaleceu. No dia seguinte, mesmo com as roupas com as marcas da aventura do dia anterior, fomos à faculdade fazer a inscrição do meu amigo. Tudo correu bem. Melhor ficaríamos quando regressámos e decidimos passar pela estação da EVA, com reduzida expectativa sobre a nossa bagagem. Para a nossa grande alegria, ali estava: o camarada que a tinha levado por engano tinha vindo devolvê-la.
Tinha sido o primeiro ataque a um autocarro da EVA naquela carreira. As ligações por estrada foram ficando cada vez mais difíceis, até cessarem praticamente. Vivemos (espart)ilhados nos vinte anos seguintes.
Que bom é podermos viver em paz!