Novo Jornal (NJ) - Comecemos pela pandemia. Os dados do continente africano são muito baixos em relação aos números da Europa ou da Ásia, mas a testagem que está a ser feita não é massiva. Quer-me falar destes números de África, e de Angola, em particular?

Jeremias Agostinho (JA) - Os dados do continente africano não são fiáveis. Tenho vindo a referir isto, o que causou alguma polémica, mas foi depois confirmado pelo secretário da OMS, que também disse que há um sub-diagnóstico dos casos em África. Porque África faz poucos testes. Angola ainda nem fez 5.000. A África do Sul está a aproximar-se agora dos 50 mil testes, o Senegal fez até agora cerca de 45 mil, e o Gana cerca de 25 mil. E estes são os países, a par do Egipto e da Argélia, que mais testam em África. Os outros não estão a testar em quantidade suficiente para estabelecer uma amostragem.

NJ - E estes são também aqueles em que os números de infectados são mais expressivos.

JA - Exactamente. Os países africanos com mais casos são aqueles que mais testam e que aplicaram uma estratégia diferente dos países que menos testes fazem. Do ponto de vista epidemiológico, para nós conseguirmos ter uma melhor visão de como está a evoluir a doença no continente africano e fazermos uma comparação com os demais continentes, temos de usar uma curva, chamada curva de gauss, ou ciclo das epidemias. As epidemias têm fases, existe a fase pré-pandémica e a fase pandémica. Um país entra na fase pré-pandémica tão logo recebe o seu primeiro caso, quando a doença é importada. Depois, vai passar por três fases intermédias, a última das quais é chamada "aceleração". É aí que passa para a fase pandémica, quando num curto espaço de tempo há um aumento vertiginoso do número de casos. Logo a seguir, entra na fase de desaceleração, o número de casos reduz. Depois entra na última fase, que chamamos "organização". Ou seja, a pandemia prepara-se para um novo pico. Então, os países entraram no chamado ciclo pandémico de forma diferente. O primeiro a entrar foi a China. Tão logo entrou, atingiu a fase de aceleração e em Janeiro o número de casos sobe. Em Fevereiro, começou a descer para a fase de desaceleração. A China está agora na fase de organização.

NJ - E com casos novos de infecção.

JA - Sim, porque essa fase tem uma característica: ou o país toma medidas e a curva nunca mais sobe, ou não toma, ou toma as erradas, e volta a ter uma nova aceleração. É o que se está a passar na Ásia.

A Europa entra em meados de Janeiro. A América entra no fim de Janeiro. África em Fevereiro, a 15, com o Egipto. Então, como os outros continentes entraram antes do nosso, eles tiveram a desaceleração antes de nós, lógico.

Agora que nós vemos a Espanha e a Itália a desacelerar, vemos África a entrar na fase de aceleração. Mas não conseguimos ter noção de quando vamos passar à fase de aceleração porque não estamos a testar os nossos concidadãos. Se não testamos, não temos como encontrar casos. E se não encontrarmos ficamos com a falsa sensação de que as coisas estão a correr bem. E tenho de chamar a atenção para isto: a distância entre a fase de entrada do ciclo pré-pandémico até à fase de aceleração depende de alguns factores.

NJ - Tais como...

JA - A idade. No continente europeu, como é mais envelhecido do que o africano, várias pessoas de maior idade foram atacadas cedo e o número de mortos subiu rapidamente. África é um continente 77 por cento jovem.

Depois, co-morbidades, ou seja, que outras doenças as pessoas têm. Na Europa predominam as doenças crónicas não transmissíveis - hipertensão, doenças cardiovasculares, cancerígenas, que debilitam o organismo e aceleram os casos.

Em África temos menos doenças crónicas, não transmissíveis, mas temos doenças transmissíveis - malária, febre tifoide, infecção urinária, tuberculose, meningite, pneumonia - que também debilitam. A diferença é que, enquanto as doenças não transmissíveis ficam com o indivíduo o tempo todo, a malária, por exemplo, que é uma doença transmissível, é sazonal. De período em período vamos tendo picos. Então, nos primeiros meses do ano não temos picos de malária, nem de pneumonia ou febre tifoide. O pico dessas doenças começa em Abril. Tão logo chove, três dias depois o mosquito se forma. Começa a malária, cujos sintomas aparecem entre o terceiro e o sétimo dia. Baixam as temperaturas e vêm a tuberculose, a pneumonia. Em África estamos a aproximar-nos da fase epidémica das doenças transmissíveis.

NJ - Ou seja, estamos a entrar numa curva perigosa...

JA - Sim, Maio, Junho, Julho, Agosto são meses com muitos casos de malária, pneumonia, tuberculose, cólera, e ainda a gripe comum. Do ponto de vista epidemiológico, suspeitamos que aquelas pessoas infectadas, sem sintomas, que vão transmitindo a outras pessoas, a partir de Maio têm condições para começarem a manifestar-se os sintomas. E é assim no continente. E o continente não testa.

NJ - Queria abrir dois parêntesis: o primeiro sobre o tipo de clima dos países africanos com mais casos e mais mortalidade, que são aqueles cujo clima é mais idêntico ao europeu... O segundo tem a ver com o que doutor disse, e com as diferenças entre as doenças do continente europeu e as do continente africano. Ou seja, enquanto na Europa essas doenças já são de fácil diagnóstico, em África, e, nomeadamente em Angola, o diagnóstico continua a ser muito difícil. Ainda hoje há gente a morrer de malária que não morreu de malária...

JA - O nosso clima, nos meses de Janeiro a Abril, é mais quente. Estamos no Verão e agora vamos entrar no Cacimbo. Este é um vírus muito susceptível à radiação ultravioleta. Isso faz com que permaneça pouco tempo nas superfícies, principalmente na rua. Se for na porta de um carro, num corrimão, que esteja exposto ao sol, mais rapidamente ele morre. Agora, um dos problemas que África vive é a presença frequente de doenças transmissíveis, que continuam aí a fazer as mesmas vítimas, só que a atenção que vai sendo prestada é menor. Na Huíla, só no primeiro trimestre, houve mais de 450 mortes por malária. Então, estas doenças continuam, são doenças que debilitam muito o nosso sistema imunológico, fazendo com que a propensão para termos a covid-19 de forma grave seja maior. Vivemos, faz pouco tempo, um período de seca que debilitou, na região sul do País, as famílias, que passaram fome, sede. E um indivíduo malnutrido tem o sistema de defesa muito em baixo, fica susceptível a todo o tipo de doenças. Agora, do ponto de vista político é bom ter poucos casos. E aqui entramos nas lideranças africanas. Passamos a imagem de que temos poucos casos, mas a verdade é que estamos a testar pouco ou quase nada. E isto é perigoso, pois o cidadão sente-se confortável por ouvir que há poucos casos e não tem capacidade de análise para pensar que as coisas se calhar não vão bem. Quem falar o contrário deseja o mal de África, conforme já se disse sobre os alertas da Organização Mundial de Saúde. "A OMS está a exagerar, as previsões estão a dar errado". Mas não estão a dar errado...

NJ - Podem é estar "adiantadas"...

JA - Exactamente. Estamos a ver apenas a ponta do iceberg. A Nigéria, por exemplo, isolou uma das suas províncias porque estava a haver um número elevado de mortes por pneumonia. Não tendo capacidade para fazer testes da Covid-19, decidiram isolar o território e fazer autópsias aos cadáveres. Veja como estamos: um teste que demora pouco tempo a ser feito e a obter resultados, está a ser substituído por uma autópsia, que é um processo muito mais demorado e dispendioso. Em primeiro lugar por falta de testes, em segundo para transmitir uma falsa tranquilidade à população. Escamoteiam-se por vezes os reais números para que as pessoas fiquem calmas.

NJ - Há quem defenda que o circuito do vírus foi o contrário do que é apresentado: que, em vez de ir da China para a Europa, foi da China para África e depois para a Europa e resto do mundo. E que alguns casos de gripes estranhas e pneumonias, no início do ano, têm a ver com a passagem do coronavírus pelo continente, mas que, devido ao clima, os números não foram significativos...

JA - Essa tese faz todo o sentido. Se compararmos com o tráfego da comunidade chinesa nos países europeus, em África é muito maior. E com o ano novo chinês, muitos residentes foram à China e voltaram no fim de Janeiro, muito antes de as fronteiras estarem fechadas. A Europa e a América notificaram casos, África não. Não o fez porque não testou, a capacidade que temos de diagnóstico é muito inferior. Uma morte suspeita na Europa é sempre submetida a uma autópsia, e quem certifica o óbito é um médico legista. Em África ainda há técnicos de saúde que nem médicos são. A morte é demasiado comum nalguns países, quase todas as causas de morte acabam atribuídas à malária. E aqui, ainda há outro problema, que é cultural: muitos familiares não permitem a autópsia. E ficamos sem saber qual é a real causa da morte.

NJ - Voltemos a Angola e à falta de testagem.

JA - Na altura, recomendei que ninguém tivesse alta da quarentena institucional ou domiciliar sem fazer o teste, porque ninguém pode ser dado como livre ou curado com um só teste negativo. Naqueles dois ou três dias podem ter escapado algumas pessoas. Tivemos agora o alívio das restrições e demos conta que 40 dias depois temos pessoas a dar positivas. Pode haver muita gente que dentro desse período, por não apresentar sintomas, teve alta, tem a declaração do ministério a dizer que não tem a doença e entrou em contacto com o seu local de trabalho ou outro sítio. Se partirmos do princípio que todos nós estamos a desenvolver a forma leve, muitos de nós somos positivos assintomáticos e não vamos saber sequer se tivemos ou não o vírus, porque não testamos. Para mitigar essa questão o Ministério da Saúde convoca os passageiros. A meu ver, essa busca que se está a fazer nos passageiros já não fornece dados que mudem a nossa estratégia de combate à covid. Vamos buscar os passageiros, imaginemos que todos dão positivo, recebem a designação de casos importados, porque são pessoas que viajaram. Eu tenho dúvidas se a Angola interessa saber se tem mais algum caso importado.

NJ- O que interessa então é...

JA - O que interessava agora é saber se tem casos na comunidade, porque aí é que iria mudar a estratégia.

NJ - Ao fazer o acompanhamento e o percurso destes doentes desde que estão cá não será também mais fácil chegar à comunidade?

JA - Sim, mas, do ponto de vista epidemiológico, os mais de mil passageiros eu não vou poder assumir que são casos comunitários, vou ter de continuar a assumir que são importados. A mim interessava-me testar as parceiras e famílias destes. É mais fácil buscar pelas famílias do que por ele mesmo, e poupo recursos. Não me parece ser o ideal a convocação dos passageiros das companhias, e atenção que eles convocam a companhia TAAG, mas entrou a TAP e a South Africa. Se eu tenho voos da TAP, da TAAG, da South Africa, da Emirates, da Ethiopian Airlines, oriundos de países doentes, o que é que eu vou fazer com a TAAG? Parece-me que estamos a perder tempo e quando der conta esses 15 dias arruinaram-se e não há dados seguros para dar ao Presidente da República.

NJ - E isso é bom ou mau politicamente?

JA - Politicamente vai ser bom, porque eu não tenho motivo, mas na prática é mau. Esta é uma doença que não dá para esconder politicamente, porque não escolhe políticos, nem pobres ou ricos.

(Leia este artigo na íntegra na edição semanal do Novo Jornal, esta semana com acesso gratuito em http://leitor.novavaga.co.ao/)