Em conferência de imprensa, o embaixador russo nas Nações Unidas, Vassily Nebenzia, actual presidente rotativo do Conselho de Segurança, disse em tom de acusação que a Rússia ainda não conseguiu exportar "um grão de cereal" ao abrigo do acordo assinado em meados de Março que estende o acordo de Julho de 2022 por mais dois meses.

O denominado acordo Iniciativa do Mar Negro foi assinado em duas vias, no mês de Julho do ano passado, para, depois de uma gigantesca campanha mediática que envolveu o próprio Secretário-Geral da ONU, focada na fome em África, alegadamente gerada pela interrupção do fluxo de grãos ucranianos, permitir que estes, devido ao bloqueio, logo no início da guerra pela frota russa, do Mar Negro, começassem a sair, especialmente para os países mais necessitados.

O documento foi assinado por russos, turcos e Nações Unidas, por um lado, e, por outro, ucranianos, turcos e ONU, com a garantia de que todos os navios, russos e ucranianos, transportando cereais e fertilizantes, são inspeccionados no Estreito de Istambul, na Turquia, de forma a evitar ilegalidades no interior dos navios.

As coisas não começaram bem com este acordo, porque, logo após o seu início, o Presidente russo, Vladimir Putin, acusava a Ucrânia e as Nações Unidas de falharem no princípio do acordo, porque os grãos ucranianos estavam a ser exportados para os países ricos e não para os mais pobres, onde milhares de pessoas morriam à fome, como a Somália e os outros países do Corno de África.

Isto, porque, embora alguns analistas apontem para uma estratégia de pressão permanente de Moscovo de forma a tirar daí dividendos político-diplomáticos, especialmente na aposta em acusar KIev de ignorar os países mais expostos à insegurança alimentar após ter garantido o acordo, Putin dizia logo em Outubro que apenas 20% dos cereais estavam a chegar aos mais necessitados, navegando a esmagadora maior parte para países ricos como o Japão, Coreia do Sul e da Europa ocidental.

Esta acusação acabou por ser corroborada por uma investigação do jornal da Áustria, eXXpress, onde se avançava que a Espanha, país auto-suficiente em cereais para os seus cidadãos, está(va) a conseguir milhões de toneladas de grãos ucranianos para alimentar os porcos que garantem a sua milionária indústria de carne e enchidos. (ver links abaixo, nesta página)

Mas, depois de alguma pressão, a que não resistiu porque a Rússia também tem interesse em manter este acordo, visto que é um dos maiores exportadores de cereais e de fertilizantes do mundo, mesmo bastante à frente da Ucrânia, embora os maiores produtores sejam China, Índia e EUA, Moscovo assunou a extensão do acordo em 18 de Março por 60 dias sob a ameaça de que não o voltaria a fazer se se mantivessem os obstáculos às exportações russas.

E, agora, o diplomata russo na ONU vem avisar que o seu país não conseguiu, ainda, "exportar um único grão ao abrigo da última extensão do acordo" que mantém aberto o corredor humanitário no Mar Negro sob a garantia de que também os produtos alimentares e agrícolas da federação Russa continuam a ser exportados.

Isto é, as sanções ocidentais à Rússia não incidem nos alimentos mas sim no transporte, especialmente no que toca aos seguros dos navios que carregam os produtos para os mercados internacionais, e, segundo Vassily Nebenzia, esses obstáculos não estão a ser levantados.

Quem mais perde com esta situação são os países africanos, que têm no fornecimento de cereais e fertilizantes, essenciais para garantir a produção local, russos, onde, apesar de a situação ter melhorado substantivamente, continuam a verificar-se situações de insegurança alimentar grave, como é o caso da Somália, Sudão, Eritreia... entre ouros.

Face a esta situação, o diplomata russo disse nestas declarações que os fertilizantes russos bloqueados nos portos europeus, se forem libertados pelas autoridades nacionais desses países, serão oferecidos aos países mais carenciados.

E deu números que atestam a preocupação de Moscovo: "Das 300 mil toneladas de fertilizantes prontas a exportar pela Rússia, apenas 30 mil toneladas foram efectivamente exportadas".

E acrescentou: "Isto são factos para que se veja como está a funcionar o acordo assinado pela Rússia ao abrigo da Iniciativa do Mar Negro", deixando um aviso numa frase com conclusão em suspenso... "Não sabemos como vai ser o futuro desta iniciativa...".

Para complicar ainda mais este processo, a companhia mercante franco-holandesa Louis Dreyfus, uma das maiores do mundo, acaba de anunciar que vai deixar de operar nos portos russos, quando era, até aqui, uma das mais importantes exportadoras dos produtos agrícolas da Federação Russa.

A razão apontada pelo director da Louis Dreyfus, Paulo Gladchuk, é precisamente as "dificuldades crescentes na exportação dos cereais russos", apesar de o acordo de Istambul prever a quebra das barreiras geradas pelas sanções ocidentais, seguindo assim esta companha os passos dos também gigantes do ramo Cargill, dos EUA, e Viterra, do Canadá.

O paradoxo de Varsóvia

Como curiosidade, alguns dos países que mais fervorosamente apoiam a Ucrânia, e serviram de pilares à campanha internacional mediática para pressionar a Rússia a abrir o corredor do Mar Negro para os grãos ucranianos, Polónia, Roménia e Bulgária, estão agora a erguer uma barreira intransponível aos cereais ucranianos por serem mais baratos que os seus, produzidos localmente, o que gera a ruína dos seus agricultores.

Com a visita desta quarta-feira a Varsóvia, capital da Polónia, por parte do Presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, milhares de agricultores ameaçam bloquear as ruas da cidade se o seu Governo não criar mecanismos legais para impedir a entrada dos cereais ucranianos na Polónia.

Os cereais ucranianos são mais baratos que os dos países vizinhos da União Europeia porque Bruxelas criou várias excepções alfandegárias aos grãos exportados por Kiev de forma a ajudar a economia do país dizimada que está por quase 14 meses de guerra com a Rússia.

Contexto da guerra na Ucrânia

A 24 de Fevereiro de 2022 as forças russas iniciaram a invasão da Ucrânia por vários pontos, tendo o Presidente russo dito que se tratava de uma "operação militar especial", sublinhando que o objectivo não era (é) a ocupação do país vizinho, condição que evoluiu depois para a anexação de territórios no Donbass mas também as regiões de Kherson e Zaporijia, mas sim a sua desmilitarização e desnazificação e assegurar que Kiev não insiste na adesão à NATO, o que Moscovo considera parte das suas garantias vitais de segurança nacional.

O Kremlin critica há vários anos fortemente o avanço da NATO para junto das suas fronteiras, agregando os antigos membros do Pacto de Varsóvia, organização que também colapsou com a extinção da URSS, em 1991.

Moscovo visa ainda garantir o reconhecimento de Kiev da soberania russa da Península da Crimeia, invadida e integrada na Rússia, depois de um referendo, em 2014, e ainda a independência das duas repúblicas do Donbass, a de Donetsk e de Lugansk, de maioria russófila, que o Kremlin já reconheceu em Fevereiro, tendo acrescido a esta reivindicação as províncias de Kherson e Zaporijia, depois da realização de referendos que a comunidade internacional, quase em uníssono, não reconhece.

Do lado ucraniano, a visão é totalmente distinta e Putin é acusado de estar a querer reintegrar a Ucrânia na Rússia como forma de reconstruir o "império soviético", que se desmoronou em 1991, com o colapso da União Soviética.

Kiev insiste que a Ucrânia é una e indivisível e que não haverá cedências territoriais como forma de acordar a paz com Moscovo, sendo, para o Presidente Volodymyr Zelensky, essencial o continuado apoio militar da NATO para expulsar as forças invasoras.

A organização militar da Aliança Atlântica está a ser, entretanto, acusada por Moscovo de estar a desenrolar uma guerra com a Rússia por procuração passada ao Exército ucraniano, o que eleva, segundo o ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Sergei Lavrov, o risco de se avançar para a III Guerra Mundial, com um confronto directo entre a Federação Russa e a NATO, que tanto o Presidente dos EUA, Joe Biden, como o Presidente Vladimir Putin, da Rússia, já admitiram que se isso acontecer é inevitável o recurso ao devastador arsenal nuclear dos dois lados desta barricada que levaria ao colapso da humanidade tal como a conhecemos.

Esta guerra na Ucrânia contou com a condenação generalizada da comunidade internacional, tendo a União Europeia e a NATO assumido a linha da frente da contestação à "operação especial" de Putin, que se materializou através de bombardeamentos das principais cidades, por meio de ataques aéreos, lançamento de misseis de cruzeiro e artilharia pesada, e com volumosas colunas militares a cercarem os grandes centros urbanos do país, mas que agora está concentrada no leste e sudeste da Ucrânia.

Na reacção, além da resistência ucraniana, Moscovo contou com o maior pacote de sanções aplicadas a um país, que está a causar danos avultados à sua economia, sendo disso exemplo a queda da sua moeda nacional, o rublo, que chegou a ser superior a 60%, embora já tenha, entretanto, recuperado.

Estas sanções, que já levaram as grandes marcas mundiais a deixar a Rússia, como as 850 lojas da McDonalds, a mais simbólica, abrangem ainda os seus desportistas, artistas, homens de negócios, a banca e grande parte das suas exportações, incluindo o sector energético, do gás natural e em parte do petróleo...

Milhares de mortos e feridos e mais de 9,5 milhões de refugiados internos e nos países vizinhos da Ucrânia são a parte visível deste desastre humanitário.