Num tempo em que há sempre um astuto descobridor " de quintais com mesa posta para a funjada de sábado", como dizia o poeta David Mestre acerca do cronista Ernesto Lara Filho, sábado é sempre motivo para encontros alargados, convívios alegres, onde se pratica o "milagre dos pães e do vinho", numa demonstração indesmentível de solidariedade tropical, exemplo que não abunda nos países do Norte; assunto que me transporta para (re) leituras saborosas, que vão dar às páginas de "Henda Xala" ( Fica a Saudade, em língua angolana kimbundu), com inesquecíveis estórias angolanas do pediatra Abílio Teixeira Mendes, que esteve em Luanda nos finais dos anos 60, mergulhou nas realidades locais, deixou saudades e admirava-se da nossa capacidade de acolher sempre mais um - fosse nas noites de farra ou nas almoçaradas de sábado.
E assim chegamos ao "Show do Mês", sábado, 31 de Maio, com Voto Gonçalves e grande orquestra.
Raramente a máxima futebolística "em equipa que ganha não se mexe" me soou tão adequada como nas realizações do consagrado "Show do Mês", com a dupla Yuri Simão e Salu Gonçalves liderando as operações.
Nesse sábado, um engarrafamento atrasou o público habitual dos concertos, mas, pouco a pouco, a sala foi-se enchendo e a harmonia restabeleceu-se.
Após a saudação elegante e bem-humorada do talentoso Mestre de Cerimónias, Salu Gonçalves, ecoa a voz do meu antigo vizinho da Rua da Índia, Bairro do Cruzeiro - hoje Patrice Lumumba - amigo desde os tempos de Liceu e parceiro nas aventuras musicais: o querido António de Jesus de Oliveira Gonçalves, o Voto.
Oriundo de família numerosa, como tantos, precisou remover muitas pedras do caminho. Enfrentou mares agitados e adversidades, mas formou-se, como grande parte da sua geração de músicos, nas prestigiosas «universidades da vida» - evocando a «minha universidade» de Gorki, onde a formação se dá fora dos muros académicos.
Nessas universidades sem férias, teve mestres de luxo: Eduardo Nascimento e os irmãos Saraiva - Fernando, Lito e John -, músicos dos Rocks. O campus? A antiga Alameda do Príncipe Real, no Miramar, onde os ensaios da banda eram verdadeiras aulas.
Na Rua da Índia, erguia-se uma outra universidade - sem muros, sem reitores, sem diplomas. Ali, o saber era passado de ouvido a ouvido, de corda a corda, de mão em mão. Era uma escola da vida onde os mestres não vestiam beca, mas afinavam almas.
Di Martto, pianista e vocalista, ouvido absoluto e coração erudito, ensinava-nos na rua- mergulhava na harmonia como quem decifra estrelas, com a elegância sincopada de Errol Garner.
Elmer Pessoa, rocker de corpo inteiro, fazia do baixo eléctrico uma bússola. E Zé Andrade, o lendário Zan, descendente direto dos visionários Rogério de Vasconcelos e Rui Romano. Criador dos Electrónicos, pop com alma e intenção, levava o jazz às esquinas como quem anuncia o futuro.
No ritmo certo, Germano Pederneira, o baterista fiel, pontuava os silêncios e acelerava os corações.
Havia ainda o mais velho - Guilherme Assis - patriarca da música angolana, memória viva do Trio Assis, que com os filhos Nando e Beto, abriu caminho para a indústria fonográfica em Angola. As primeiras gravações, talvez desde 1949, ainda hoje sussurram histórias de um país que cantava para não esquecer.
E entre todos, Rui Mingas, voz colada ao violão, ensinava a beleza com a paciência dos rios.
Nas noites mornas da Rua, as aulas práticas aconteciam quando o Ngola Ritmos, mesmo sem Liceu e Amadeu, se reunia na casa do kota Teodomiro de Oliveira. Cada acorde era uma lição de pertença, cada batuque, uma afirmação de identidade.
Ali, na Rua da Índia, aprendeu-se o que livro nenhum ensina: a música como língua materna do espírito.
Um concerto em maré alta
Sob a batuta do tecladista Benny, uma "Big Band" vibrante e jovem - composta por instrumentistas competentes e cumpridores - deu corpo a uma harmonia coesa e plástica, onde cada solista se entrelaçou num todo maior.
Nos metais, o brilho de Tany Sax, Mário Figueiredo e Yuri Vieira, entre saxofones, trompete e trombone. A percussão foi sustentada com vigor e alma: Joãozinho Morgado, eterno mestre das congas, ao lado do promissor Bucho; na bateria, Lito Graça e Dennis Parker; e no cruzamento entre ritmo, percussão e voz, Raul "Tollingas" Fonseca - fenómeno da dikanza nacional, cuja genialidade simples encanta pela acentuação precisa e pela força vocal.
Nos momentos de evocação carnavalesca por Voto Gonçalves, Tollingas deu vida a "Cidrália" e "Tueza Muxalesa", deixando marcas de pura emoção.
Quatro guitarras costuraram as bases: Francisco no baixo, Necas no solo, Padre no ritmo - todos sob a direção de Boto Trindade, artista da subtileza, criador de bandas e temas como o delicado "Tapioca", sempre amante da tonalidade rica e dos acordes dissonantes que agradam à alma.
A secção de cordas elevou ainda mais o conjunto, com a elegância de Eugénio (violino), Uami (viola d"arco) e António (violoncelo), completando a sinfonia de sons que celebrou talento, tradição e ousadia.
O cantor e banda beneficiaram com os contributos e o entusiasmo das simpáticas coristas: Raquel Lisboa e Benção Neves.
Rigor em rica harmonia
Voto Gonçalves apresentou no Plaza um concerto envolvente, marcado por uma fusão de influências e uma entrega criativa notável. Interpretou sucessos como "Pão com Chouriço", "Nga Biti Leba" e "Zénu Bhoba", cativando uma plateia atenta e entusiasta. A sua performance remeteu à "soul" clássica, evocando a memória de Otis Redding, e destacou-se pela polivalência expressiva e emocional.
A noite foi enriquecida pela participação de convidados especiais: Fedy, Carlos Baptista e Filipe Mukenga. Filipe Mukenga, em particular, trouxe ao palco a nostalgia dos Beatles com "And I Love Her" e abordou questões sociais com "Balabina", refletindo sobre os dramas da juventude dos musseques. Um concerto que uniu memória e excelência musical, proporcionando uma experiência inesquecível.