Deve-o enquanto financiador e organizador do "Exército da Paz" que pagou, mobilizou, equipou e comandou os milhares de capacetes azuis que constituíram a maior operação de manutenção de paz até então (estamos a falar dos anos 90 do século passado). E deve-o enquanto organização cujo chefe máximo no País, o maliano Maitre Alioune Blondin Beye, pagou com a vida a dedicação pela paz num acidente de aviação na África Ocidental, quando efectuava mais uma ronda de contactos de alto nível para o fim de um conflito que parecia insanável.
Para explicar esta introdução que muitos poderão considerar ousada, conto-vos, em breves pinceladas, a história das Nações Unidas em Angola, tal como a testemunhei. Divido-a em quatro partes: de 1976 a 1988; de 1988 a 1992; de 1992 a 2002; e de 2002 à actualidade.
Em meados de 1976, meses depois de Angola ter sido admitida nas Nações Unidas, abria em Luanda a sua primeira Agência Especializada: O Fundo das Nações Unidas para a Infância, UNICEF. Seguido meses depois pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), que coordenava o Sistema das Nações Unidas em Angola, o Fundo das Nações Unidas para a Agricultura, FAO e o Programa Alimentar Mundial, o depois famoso PAM. Nesse período até 1988 e num contexto de guerra de mais ou menos baixa intensidade, essas agências dedicaram-se essencialmente ao reforço das capacidades institucionais na Saúde, Educação e Água, Saneamento e Promoção de Higiene Ambiental. A FAO concentrou-se em programas de combate à desertificação e o PAM nalgumas (pequenas) operações de Comida para o Trabalho, projectos em que as comunidades realizavam pequenos trabalhos comunitários e recebiam alimentos em troca.
Com a assinatura dos Acordos de Nova Iorque, as Nações Unidas foram chamadas a fiscalizar a retirada das tropas cubanas de Angola. Assim surgiu a Missão de Verificação em Angola (UNAVEM I sigla em inglês - United Nations Angola Verification Mission). E com os Acordos de Bicesse a realizar uma gigantesca operação de ajuda alimentar para comunidades carentes pela impossibilidade de realizar a sua agricultura e beneficiar de bens industriais, por causa da guerra, e, por isso mesmo, afectadas pela fome e desnutrição, surgiu, então, o Programa de Assistência do Sul de Angola (SARP I na sigla inglesa - Southern Angola Relief Program) coordenado pelo PAM.
Re-eclodiu a guerra em Outubro de 1992 com muito mais violência. Milhares de pessoas passaram à condição de deslocadas internas. No seu apogeu, em 1995, as estatísticas apontavam que dois terços da população angolana dependiam de ajuda humanitária para sobreviver e um terço alojava-se em tendas de campos de deslocados. Foi nessa altura que as Nações Unidas se transformaram numa espécie de governo paralelo com um sector de distribuição alimentar (PAM), Saúde, Educação, Água e Saneamento (UNICEF e OMS), Transportes e Logística (Organização Internacional de Migrações, OIM) e centenas de ONG"s nacionais e estrangeiras que asseguravam verdadeiramente a sobrevivência das populações nos dois lados do conflito, já que as autoridades estavam quase totalmente absorvidas no esforço da guerra.
Foi também quando a coordenação geral deste esforço humanitário e político passou a cargo de um secretário especial do secretário-geral das Nações Unidas. Essa entidade, com categoria de secretário-geral adjunto era quem fazia a ponte entre o então Presidente, José Eduardo dos Santos, e o líder da UNITA, Jonas Savimbi. Entre 1991 e 1999 foram três os que aqui passaram: A britânica Margareth Anstee, que supervisionou as eleições de 1992 e saiu desiludida por não ter conseguido evitar a guerra que se lhe seguiu; o maliano Alioune Blondin Beye, dinâmico e exímio negociador que morreu num acidente de aviação no Togo, quando realizava mais um périplo pelos líderes africanos da região para mobilizar apoio para os esforços da paz em Angola; e finalmente o nigeriano Ibrahim Gambari, que, perante a decisão do Governo que, cansado das fintas de Savimbi, decidiu "fazer a guerra para acabar com a guerra", só lhe restou fechar a Missão. Foram quatro no total as missões de paz para Angola entre 1991 e 1999: as UNAVEM I e II e as MONUA I e II. No auge da sua presença, chegou a contabilizar cerca de 10.000 entre militares e observadores. Países como a Roménia, Namíbia, Zimbabwe, Índia, Brasil, Portugal, Uruguai e vários outros contribuíram com tropas para essas missões.
Se no campo político as Nações Unidas não alcançaram os objectivos a que se propunham - o Governo lançou uma ofensiva que acabou por aniquilar o poderio militar da UNITA, eliminou em combate o líder rebelde e a paz foi finalmente alcançada -, já no plano da assistência humanitária foi essa organização que impediu uma catástrofe humanitária de amplitude imprevisível. É que as populações não sofriam só de falta de alimentos e doenças associadas. Surgiram pelo meio epidemias de meningite, sarampo, a educação entrou quase em colapso e a distribuição de medicamentos e equipamentos hospitalares estagnou, enquanto a guerra prosseguiu com violência cada vez mais crescente. Foram as várias agências especializadas das Nações Unidas que negociaram com as autoridades de ambos os lados corredores humanitários para campanhas de vacinação, distribuição de alimentos, terapêuticos e medicamentos, material escolar, comprimidos de purificação de água, e até formação e treinamento para professores e profissionais de saúde.
Alguns angolanos - porque eram os angolanos que, na sua maioria, realizavam estas operações de alto risco - pagaram com a vida o preço último do serviço à causa humanitária. O mais conhecido foi Jorge Tarana, chefe de Base do PAM no Kwanza-Norte, alvejado no troço entre Ndalatando e Golungo Alto. Eu mesmo caí em minas terrestres quando dirigia colunas humanitárias, uma vez no Kuvangu em 1996 e outra no Gove no dia do meu aniversário em 1998.
As Nações Unidas conseguiram evitar uma catástrofe humanitária eminente. Quando em 2002 o Governo, com a guerra já ganha tomou em mãos o reassentamento dos deslocados, a desminagem das estradas e áreas de cultivo e a reabilitação das infra-estruturas, diziam as estatísticas que duas em cada três crianças estavam desnutridas. O mesmo número estava fora do sistema escolar. 80% das infra-estruturas escolares e de saúde estavam destruídas. Angola tinha a segunda taxa de mortalidade mais alta do Mundo depois do Afeganistão. Mas não tinha atingido o ponto de colapso depois de 27 anos de guerra, os últimos 10 dos quais de inaudita violência. E isso deveu-se às Nações Unidas.
A partir de 2002, o Governo assumiu o controlo da situação e as Nações Unidas evoluíram para um papel mais de advocacia e capacitação institucional dos parceiros do Estado com quem desenvolve actividades. Mas não deixa de ser relevante: para quem não saiba, é a ela que se deveu o controlo eficaz da epidemia do Marburg em 2005 e da Febre-amarela em 2008. Também foi ela que liderou a advocacia e assistência técnica na erradicação da poliomielite através da Organização Mundial da Saúde (OMS). Foi ela que empreendeu um processo discreto mas persistente da adopção das transferências monetárias não retributivas que resultaram no projecto "Kwenda". E na recente emergência da seca no Sul do País, quem instalou pequenos sistemas de abastecimento de água potável nas comunidades rurais, assim como prestou assistência aos programas de recuperação nutricional sobretudo das crianças. Isso para citar apenas algumas das suas intervenções.
Essa imensa contribuição foi liderada por expatriados, mas teve as impressões digitais de muitos angolanos. Desde o "Kota" Daves, pai da actual Ministra das Finanças, a nomes que depois continuaram a servir com distinção o País. São tantos, que os seus nomes encheriam muitas páginas.
Mas são uma geração que o País não deve esquecer. Tal como as próprias Nações Unidas, o País devia um dia parar e relembrar o contributo que estes soldados silenciosos da paz, esse missionários da vida fizeram para que sejamos a orgulhosa Pátria que Angola é.n *Antigo Oficial de Comunicação do UNICEF Angola