Sob o prisma do olhar, num exercício de simbiose literária, o escritor angolano, José Eduardo Agualusa, dá voz a grandes escritores, levando-os a comentar o mundo e a actualidade. Um exercício curioso, original e de rara sensibilidade que resultou no título O Lugar do Morto (2011), editado pela Tinta da China.
Existem muitas questões relevantes a discutir sobre a nossa actualidade: pandemias recorrentes, colapso ecológico, guerras civis e regionais, conflitos de cunho religioso, pobreza, destruição de recursos naturais, vaga de migrações, etc. Conferindo à nossa pós-modernidade - na acepção de Jean François Lyotard (1924 - 1998) - aura de incerteza e de perplexidade. Em O Lugar do Morto, Agualusa faz com que personalidades importantes da literatura - que cá já não estão - ressurjam e olhem para a nossa actualidade, dando-lhes voz. Um olhar na acepção do já citado John Peter Berger. Especula ideias e pensamentos, desassossegos e repúdios. O autor, nascido no Planalto Central, psicografou 24 escritores já falecidos, revelando as suas opiniões sobre assuntos importantes do nosso quotidiano. São vozes do além, reencarnadas, ficcionalmente, na pena do mais internacional dos escritores angolanos.
Sir Richard Burton (1821-1890), escritor poliglota, por exemplo, indigna-se contra fronteiras e perseguições de imigrantes: "Assisto desgostoso ao desespero com que centena de africanos vendem o pouco que têm para, colocando em risco a própria vida, transporem uma fronteira que a cada dia se fecha mais. Aquilo que num cidadão europeu seria considerado virtude rara, a firme vontade de trabalhar, passa a ser encarado nos africanos como comportamento criminoso". E lança farpas ao Ocidente: "Numa Europa envelhecida, onde o sistema social corre o risco de entrar em colapso, estas pessoas, na sua maioria jovens, saudáveis e empreendedores, estão dispostas a produzir riqueza e pagar impostos." Idem: "Num continente à beira de uma perigosa implosão demográfica, estas pessoas mantêm a alegria da procriação". E deixa uma pergunta lancinante, curta e grossa: "O que fazem, entretanto, os democráticos governos europeus?"
Vladimir Nabokov (1899-1977), escritor russo-americano, nascido em São Petersburgo, faz diagnóstico da batalha eleitoral que opôs Hillary Clinton e Barak Obama, quando os democratas experienciavam uma longa batalha destinada a seleccionar o candidato do partido para as eleições à Casa Branca, em 2008. Estridente e interrogativo: "O que seria da América sem o sonho?" Atira extasiado: "A ideia de que os americanos estão prestes a fazer história, quer votem em Obama, quer votem em Hillary, porque um seria o primeiro presidente negro e a outra a primeira mulher na Casa Branca é, está visto, uma verdade não tão verdadeira, nem no caso Obama, nem no caso Hillary - mas como atrai!"
O autor viaja, como era de prever, para o universo da língua portuguesa com autores popularmente conhecidos. Faz incursão ao luso-tropicalismo, pela voz do brasileiro pernambucano, Gilberto de Mello Freyre (1900-1987) para denunciar o racismo: "Publiquei Casa Grande e Sanzala em 1933. O livro teve o mérito de contrariar as teses racistas então prevalecentes, exaltando a força criadora da mestiçagem e do destino crioulo do Brasil. Creio que contribuí, por pouco que fosse, para devolver o Brasil aos brasileiros, o orgulho e a auto-estima a esta vasta percentagem dos meus compatriotas cujos ancestrais vieram da África, sequestrados, em navio negreiro." Conclui peremptório: "Depois de formar o Brasil, a força da mestiçagem - termo que, significativamente, não tem tradução para o inglês - está agora, de novo, a transformar Portugal."
Do luso-tropicalismo, faz um rodopio ao nosso Viriato da Cruz (1928-1973): "Há quem ache que Angola poderia ser, hoje, um país muito diferente, se eu não tivesse morrido tão cedo, mesmo às portas da Revolução de Abril em Portugal, e das grandes mudanças que a mesma implicou para o meu país. Sinto-me lisonjeado com tais opiniões, mas acho-as exageradas." Idem: "Se não tivesse morrido em 1973, estaria agora a confrontar-me - Inclusive a murro e a cacetada, caso não me faltasse fôlego, mas em todo o caso com o mesmo espírito iconoclasta - com todos quantos impedem um novo pensamento."
Misoginias à parte. O livro não cerceia a voz das mulheres. Sophia de Mello Breyner (1919-2004) e Clarice Lispector (1920-1977), duas vozes únicas femininas psicografadas, projectam neste ensaio o engajamento cívico e militante da causa matriarcal. Desfilam no livro uma plêiade de outros autores cujo pensamento, certamente, teria iluminado o penoso crepúsculo que marca a nossa pós-modernidade: Jorge Amado, Machado de Assis, Fernando Pessoa, Léopold Sédar Senghor, Bertrand Russel, Eça de Queirós, Jorge Luís Borges, Vinicius de Moraes, Padre António Vieira, entre outros.
O que diria, qualquer um destes autores, sobre as guerras entre a Ucrânia e a Rússia, entre Israel e o Hamas, do conflito entre a República Democrática do Congo e o vizinho Ruanda, ou da recente corrida eleitoral americana, que opõe o actual Presidente, Joe Biden, e o ex-Presidente, Donald Trump?
*Mestre em Linguística pela Universidade Agostinho Neto