Eu tinha 13 ou 14 anos quando comecei a perceber a nobreza daquela figura. Apesar da diferença geracional, havia entre ele e os adolescentes da vizinhança uma ponte de empatia e convivência. A casa de Garcia Bires não era apenas um espaço privado: era uma extensão do bairro, um lugar de confraternização e de aprendizados. Foi como um pai para muitos de nós.
A sua esposa, Cândida Bires (Dona Cândida), era também um exemplo de elegância moral e afabilidade. Era um casal de referência, não apenas pelo estatuto social, mas pelo modo como viviam a cidadania, com empatia e simplicidade. Eram vizinhos exemplares. Sempre prontos a ajudar, a ouvir, a partilhar.
Adjacente ao rés-do-chão, do prédio onde vivia, no gaveto da Rua Major Marcelino Dias com o beco homónimo, mantinha uma pequena horta: ali cresciam bananeiras, hortelã, coentros, alface e outras culturas hortícolas que cuidava com zelo. Víamos, com frequência, a sua figura serena a regar as plantas, a cortar as folhas secas, a tratar da terra. Convidava-nos a ajudá-lo, ensinando-nos a valorizar a relação com a natureza.
Tinha também um afecto natural pelos animais. Aprendemos com ele que há dignidade profunda nos pequenos gestos diários. A natureza, para Garcia Bires, era uma extensão da ética com que vivia.
Lembro-me do privilégio que foi conhecer pessoalmente, através da família Bires, figuras de proa do seu partido, o MPLA, entre outras, Paulo Teixeira Jorge e Venâncio de Moura, ambos nacionalistas. O primeiro, foi Ministro das Relações Exteriores, entre 1976 e 1984, Comissário Provincial no Cuanza-Norte, entre 1986 e 1989, e Governador de Benguela, entre 1989 e 1994. O segundo, foi figura incontornável da diplomacia angolana e um dos signatários do Protocolo de Lusaka, pelo Governo angolano, além de embaixador na Itália e Ministro das Relações Exteriores, entre 1992 e 1999. Aliás, as duas figuras eram presenças habituais na casa de Garcia Bires no Maculusso.
As memórias da infância e adolescência no Maculusso estão profundamente ligadas àquela casa. A presença de Garcia Bires foi pedagógica, mesmo quando ele não falava. A sua postura era uma lição: de respeito, de ponderação, de decência. Havia nele um ideal de Angola que hoje parecem ter perdido.
Nascido a 27 de Fevereiro de 1944, em Luanda, e envolvido na luta de libertação nacional desde 1960, ano em que se exilou na clandestinidade (no Congo-Leopoldoville, actual República Democrática do Congo), Garcia Bires incorporou, desde cedo, os ideais de liberdade e justiça social. Participou activamente da resistência contra o colonialismo, tendo desenvolvido uma trajectória que o levaria à União Soviética, onde concluiu os estudos superiores.
Com o tempo, viria a representar Angola como embaixador na Namíbia, China e Moçambique, em períodos cruciais da diplomacia angolana. A sua acção, embora não ruidosa, foi firme e respeitada. Garcia Bires exercia a política com um sentido de serviço público, comedimento e honestidade, hoje tão raros. Nunca o vimos vangloriar-se dos seus cargos ou conquistas.
Escritor e membro importante da União dos Escritores Angolanos. Fazia da leitura a sua religião, e da poesia, uma profissão de fé. Publicou Dia de Calendário (1986) e O Silêncio Acordado (1988), duas obras que revelam a sua densidade introspectiva. Organizou ainda a antologia O Canto da Liberdade (1975), reunindo vozes angolanas no fervor da luta.
Ao homenagear Garcia Bires, não é apenas o diplomata e o poeta que se evoca. É o homem bom. O vizinho de portas abertas. O adulto que ofereceu aos mais jovens um exemplo sereno de grandeza. A sua vida foi um poema discreto, mas essencial, escrito nas entrelinhas da convivência e da dignidade.
A ele, a nossa gratidão e saudade. A Angola, o dever de reconhecer, ainda que tardiamente, os seus melhores filhos. n

*Mestre em Linguística pela Universidade Agostinho Neto