Vai falar dos palácios que vão engrossando o Dubai Hospitalar angolano, mas não dirá nada sobre as condições de funcionamento que deixam muito a desejar, nem sobre as limitações de acesso ou do estado dos centros e postos de saúde.
Elogiará os feitos no sector da energia, sem explicar como é possível haver produção no vazio por falta de investimento atempado na rede de transporte e de distribuição, penalizando as famílias e as empresas, para além dos prejuízos provocados pelos apagões.
Apresentará o Kwenda como bandeira do combate à pobreza, mas não terá certamente argumentos para explicar como cada município pode combater a pobreza com a caricata verba de 300 milhões de kwanzas anuais (menos de 300 mil dólares), e ainda para mais quando em 2025 se conhece apenas uma execução de cerca de 72%, o que nos obriga a comparações com o despesismo das viagens, da aquisição de viaturas luxuosas e dos exageros protocolares.
Evidenciará os ganhos da agricultura e da indústria, mas omitirá a regressão da taxa de crescimento da agricultura em 2024 de cerca de 5% para 1,7% em relação a 2023, bem como a regressão da produção pecuária em 2%. Não dirá nada sobre a dependência da indústria de matérias-primas importadas e dos prejuízos em que incorre a economia nacional.
Louvará o papel do Canal do Cafu na luta contra os efeitos da seca no Cunene, sem manifestar preocupação com os efeitos perversos sobre o modo de vida das populações pastoris e a sua cultura, pois a ideia de transformá-las em agricultores nada tem a ver com as suas expectativas. O benefício mais apreciado por elas será, talvez, a "venda" das parcelas que lhes estão a ser atribuídas a agricultores "vientes" para poderem comprar mais gado, o que agravará ainda mais o problema da água e dos pastos, afinal o seu problema mais sentido. Ah! O projectado Vale de S. Francisco, digo, do Cunene, prometido pelo governo e empresários brasileiros. Os portugueses e os sul africanos sonharam com algo semelhante há mais de 50 anos. Entretanto, as populações pastoris continuam a encarar o apocalipse bíblico não como catástrofe, mas sim como a manifestação do plano redentor de Deus e a vitória final de Cristo sobre o mal.
O Presidente João Lourenço não gosta de ouvir conselhos. Ainda assim, sugiro, de modo resumido, três embrulhos de medidas que representam um contributo para quem queira olhar o futuro de Angola de modo diferente.
O primeiro embrulho engloba um conjunto de medidas que abarcam a educação em sentido lato, com destaque para a iniciação e o nível primário, o que exige forte empenho na preparação de professores com métodos modernos, construção de escolas simples e funcionais onde carteiras e casas de banho tenham prioridade sobre a empáfia da dignidade indigna. Medidas que coloquem a moral - enquanto conjunto de normas e regras baseadas na cultura e nos costumes de determinado grupo social ou sociedade - e a ética - como comportamento resultante da reflexão sobre a moral e sobre os princípios orientadores das acções humanas, no centro das relações no seio das famílias, nas escolas, nas empresas, na rua, no trânsito. Medidas que incluam um novo olhar sobre o cumprimento das leis, mas também das regras e das normas sociais.
O segundo prioriza a transformação estrutural da economia, condição para a sua diversificação gradual. A economia angolana não pode crescer limitada ao enclave petrolífero e deixando à margem os actores mais numerosos sob o pretexto do rótulo pecaminoso da informalidade. Urge mudar de mentalidade e de abordagem em maior consonância com a realidade cultural e com o nível de desenvolvimento das forças produtivas. Urge igualmente fazer funcionar o mercado com regras de equidade, melhorar o ambiente de negócios e promover o empoderamento de actores locais de modo a tornarem-se os protagonistas do desenvolvimento local em áreas como a agricultura, a indústria, o comércio e os serviços e com isso estancar ou reduzir o êxodo rural.
O último embrulho diz respeito à melhoria da qualidade da democracia. Na base do recuo democrático depois do fim da guerra está o insucesso do processo de reconciliação. Ainda prevalece a ideia da existência de vencedores e vencidos, de cidadãos e de grupos de cidadãos que têm mais direitos do que outros, em termos políticos, de acesso a riqueza e a bens materiais e não materiais, de status. Angola continuará um país adiado enquanto Holden Roberto e Jonas Savimbi continuarem a ser vistos como proscritos e sem ser reconhecido o seu protagonismo na luta de libertação. Mendes de Carvalho e Lopo Nascimento reconheceram publicamente que fizeram a apologia da UPA quando esta já era dirigida por Holden. O maior número de prisioneiros do Tarrafal era ligado à UNITA e milhões de angolanos revêm-se numa organização que continua a venerar Savimbi, incluindo em termos culturais. Nada, do ponto de vista político ou ideológico pode justificar o apartheid actual.
Apesar do reconhecimento do papel na luta de libertação das principais figuras ligadas ao 27 de Maio, há quem apresente razões para também discordar do modo como a reconciliação tem sido conduzida. A falta de diálogo, de convivência, de reconhecimento do outro explica o insucesso. Resolvida a questão da reconciliação, processos como a abertura da comunicação social, a construção da cidadania e a afirmação da sociedade civil poderão ser encarados como um espaço pluralista e integrador de diversidades, um espaço crítico livre que influencie os poderes sem pretender participar neles, um espaço sem poder, mas com a autoridade que lhe advém dos seus saberes e competências. Um espaço de construção da angolanidade e da paz, da luta contra a fome e contra a corrupção. Um espaço a favor da justiça social, dos direitos humanos, enfim, de desenho de um projecto nacional renovado.
*Engenheiro Agrónomo