"O povo é quem mais ordena" foi também uma das mensagens que marcaram a Revolução de 25 de Abril de 1974, em Portugal. Na verdade, o nosso texto constitucional deixa bem presente que a soberania reside no povo. O povo é soberano e é ele que tem o direito de escolher os seus governantes, o voto popular é ainda uma das maiores armas das democracias.

"O povo é o meu patrão" é uma frase que não é inédita, nem exclusiva de João Lourenço, já aqui deixei os exemplos de Samora Machel e Filipe Nyusi, em Moçambique. Mas, na verdade, não passa de retórica política e pura cosmética.

A história, os exemplos e os modelos de governação em África deixam bem claro que os governantes não se deixam estar numa posição de subalternização em relação ao povo.

Temos de ser honestos e coerentes, conhecendo o estilo e forma de governar de João Lourenço, vamos acreditar que ele aceite o povo como seu patrão? Ele é o dono e senhor do poder e jamais aceitará que outro ente tenha poder sobre ele.

Os auxiliares que aplaudiram quando ele fez este pronunciamento nem acreditam nisso. Uma coisa é o que é dito e outra é o que é praticado. A prática é o critério da verdade.

O Parlamento que em termos democráticos representa o Povo, que agora é o "Patrão do Presidente da República", tem sobre ele um papel meramente "passivo".

O Parlamento é um "patrão" que não pode, nem deve fiscalizar ou pedir contas ao seu "empregado". É um "patrão" que constantemente se queixa, encontra barreiras para fazer audições periódicas ao seu "empregado". Um "empregado" que quando vai prestar contas anuais em sede de algo que se chama "Estado da Nação" não permite que seja questionado pelos representantes do "patrão"? Não vale dizer que o povo é o seu patrão quando não se respeita a tal autoridade.

O povo somos todos nós, somos um dos elementos fundamentais daquilo que se chama Nação. Os dirigentes, militantes e simpatizantes dos partidos da oposição, os membros das organizações da sociedade civil, os jornalistas, comentadores, opinion-makers, e outros, não deixam de ser parte do povo apenas por escrutinar o exercício do poder e porque têm uma visão crítica sobre certos modelos da sua governação, fazem todos parte deste povo que agora o PR anunciou como seu patrão.

Portanto, não faz sentido um "empregado" "mandar passear" o seu "patrão". Isto pode ser encarado como insubordinação e dá direito a um processo disciplinar.

Existe aqui uma questão muito importante de posição e comunicação. Nestes eventos, como a visita que fez ao Moxico-Leste, onde até reuniu o seu conselho de ministros, João Lourenço deve manter uma posição de estadista e não pode haver dúvidas sobre isso.

Os cidadãos não podem ficar na dúvida sobre quando é que está a falar o Presidente da República ou quando está a falar o presidente do MPLA. E a sua comunicação tem de estar ao nível de um estadista, tem a responsabilidade de elevar o discurso, tem de marcar o nível do discurso, nestas circunstâncias, deve evitar ficar pelas farpas partidárias. Deve posicionar-se, mostrar aos cidadãos, aos membros do seu partido e da oposição que está num nível superior, o de Chefe de Estado.

Uma coisa que não se pode esquecer: João Lourenço é o Presidente de todos os angolanos, tem poderes de representação e legitimidade que lhe foi concedida pelo povo por via do voto. Mas isso faz com que tenha também de ter coerência, humildade e consciência para assumir que, na verdade, o povo não é o seu patrão.

Aquilo é mera retórica e um certo populismo para animar a malta. João Lourenço não tem patrão, é patrão de si próprio. E é algo que não é só dele, é assim com a maior parte dos governantes em África.

Para o actual momento de crise económica, social e moral, um momento de falta de confiança nos políticos e nas instituições, o povo seria um patrão implacável.

Neste momento em que tem os piores níveis de popularidade, a última coisa que João Lourenço podia pedir era ter o povo como seu patrão. Se o povo fosse o seu patrão de verdade, obviamente demiti-lo-ia, alegando justa causa.