Se quisermos, a parte final da trajectória de JES foi uma das transições mais longas que conhecemos da história moderna do continente africano, desde que ele começou a dar sinais de que mais tarde ou mais cedo iria "bazar".

Sinais bastante contraditórios, no âmbito dos quais a primeira vítima acabaria por ser o próprio João Lourenço, ainda no início dos anos 2000.

Apesar de formalmente o seu consulado ter terminado com o Congresso extraordinário do MPLA realizado Setembro de 2018 onde ele também deixou a liderança do partido governante para João Lourenço, após um período de alguns longos e algo tensos meses, que ficou conhecido pela "bicefalia", o que é facto é que os anos que seguiram, por tudo quanto aconteceu, continuaram a fazer parte dessa transição.

Na verdade JES, depois de ter reinado por 38 anos consecutivos, foi morrendo todos os dias, numa lenta agonia, durante este tempo que se prolongou até ao passado dia 8 de Julho, como consequência de todos os demolidores ataques que os seus interesses foram sofrendo na pessoa dos seus filhos e dos seus colaboradores mais directos, numa altura em que novos processos se anunciam contra os generais Kopelipa e Dino.

Esta segunda parte da transição, já em modo de uma silenciosa omissão (ou demissão?) foi de facto e mesmo de jure, um prolongado sofrimento para quem mandou neste país como ele mandou, para quem distribuiu o bolo do rendimento nacional como ele melhor entendeu, chamando-lhe por vezes nomes estranhos como "acumulação primitiva do capital" que mais pareciam códigos de operações secretas.

Tirando a conferência de imprensa, apenas com uma breve declaração e sem perguntas, sobre o episódio dos cofres vazios, a sua já cada vez mais trémula voz, não voltou a ser ouvida mais nestes anos todos, apesar de se ter predisposto a ir a tribunal depor, o que lhe foi recusado pelo juiz da causa onde o seu filho Zénu dos Santos acabou por ser condenado no âmbito de um processo que, segundo julgamos saber, ainda não transitou em julgado.

Quando todos pensavam que ele já não tinha qualquer valor político, é a sua própria morte física, que vem relançar a figura de JES na cena política angolana, com impactos vários numa altura em que todos os factos vão, certamente, ter alguma influência sobre o eleitorado, que se prepara para ir as urnas dentro de pouco mais de um mês.

E é aqui que está o problema deste renascimento de JES das cinzas de uma dolorosa transição que já se tinha transformado para ele numa humilhação diária, acossado por todos os lados, onde se incluem os seus filhos e a sua própria fragilidade física, que não parava de se agravar e a olhos vistos.

Em 2018 escrevi aqui mesmo no Novo Jornal que JES após ter ganho todas as batalhas da sua longa trajectória tinha finalmente perdido a última que foi a da sua sucessão ao apostar em João Lourenço, quando com todo o poder que tinha na época poderia ter optado pelo outro putativo candidato, que era Bornito de Sousa.

Ninguém hoje parece ter qualquer dúvida que se JES tivesse invertido os termos da sua aposta entre os dois candidatos, hoje nesta sua despedida definitiva do nosso mundo dos vivos, as coisas seriam bem diferentes.

O país não seria certamente este que hoje temos e onde a sua herança foi praticamente arrasada, ao ponto de parte dos seus familiares mais próximos terem preferido deixar o país receando que o pior lhes pudesse acontecer, como consequência da luta contra a corrupção, que acabou sendo a marca principal da sua gestão após o alcance da paz em 2002, com a morte de Jonas Savimbi.

Como "prémio de consolação" e enquanto em Barcelona, onde ele faleceu, decorre uma estranha batalha pela transladação dos seus restos mortais, temos agora a sua figura finalmente a ser homenageada por todo o país com as honras devidas a um Chefe de Estado, que ele já não era.

Os elogios que lhe estão a ser dedicados são tantos e tão generosos, que as pessoas, sobretudo os seus camaradas de partido, parecem ter-se esquecido que até bem pouco tempo JES era por eles apontado como o grande responsável por todas as desgraças sociais que o país tem vindo a conhecer por mau uso dos seus recursos públicos.

Pelos vistos foi preciso morrer duas vezes para que este "milagre da redenção" viesse a acontecer.

Em termos mais populares esta "consolação" pode ser vista nas ruas com manifestações de descontentamento contra João Lourenço por parte das zungueiras, mas não só.

Manifestações que, de certeza, estão a ser vistas com a maior preocupação no estado-maior da campanha eleitoral do MPLA que foi a primeira a sentir pela negativa o peso desta morte.

No Facebook e numa tentativa de resumir toda esta movimentação final de JES escrevi o seguinte:

É obra!

JES foi dos poucos protagonistas que passou de bestial para besta, para depois voltar a ser novamente bestial.

Mas para isso, teve de morrer.

Seja como for, ainda não é o tempo certo para se contarem as espingardas, diante de tudo quanto ainda está para acontecer na sequência deste acontecimento fúnebre, com as atenções voltadas para o seu impacto político sobre o conjunto da sociedade, mas sobretudo sobre a própria coesão das hostes do partido governante vistas num sentido o mais alargado possível.

*Jornalista