Andamos há quarenta e cinco anos à procura da liberdade, mas, há quatro décadas e meia, que andamos ainda à procura de enterrar, de vez, os traumas que, desde os primórdios da luta pela Independência, tatuaram o ideário do movimento nacionalista angolano: a exclusão do Outro e o medo das ideias do Outro.

É essa matriz de intolerância e de violência para com o Outro, que, quarenta e cinco anos depois da Independência, continua a condicionar os reflexos mentais de políticos, governantes e membros de uma sociedade civil que, afinal, ainda é refém de um presente com o futuro filtrado pelos óculos de um passado que antecede a Independência.

E que, até hoje, mantém viva a sua influência sobre o nosso comportamento perante os poderes públicos. Por isso, não está a ser fácil...

Não está a ser fácil enfrentar o medo para acabar com o medo. Mas vem de longe esse tempo em que vivíamos lá fora um tempo sem medo. Era o tempo em que, sem nos apercebermos por aqui, lá fora o mundo era varrido pelos ventos de mudança trazidos pelo Maio de 68 e em que os estudantes universitários de Nanterre e de Berkeley e os trabalhadores iam esmagando o cinzentismo de uma ordem anacrónica, para criarem uma época nova que passou a prometer horizontes mais optimistas.

Mas, presente nas nossas mentes está também o tempo em que, em Angola, em meados desse mesmo ano, no Noroeste, cinco Senhoras, verdadeiras "freedom fighters"- Teresa, Lucrécia, Engrácia, Irene e Deolinda - eram assassinadas, depois de cerca de um ano de sevicias e de torturas inenarráveis por parte de quem tinha por missão expulsar o colono, o estrangeiro.

Reféns de Kinkuzu, ao lado, em Brazaville, tornamo-nos depois prisioneiros das perseguições dos primeiros dissidentes e, em Angola, ainda em vésperas da Independência, abraçámos e aplaudimos mais tarde as prisões políticas que conduziram à cadeia membros da OCA, dos CACs e dos Comités Hendas - grupos de militantes afectos ao MPLA que partilhavam visões diferentes, nalguns casos com contradições que raiavam mesmo ao extremismo. Começámos a conhecer, assim, o medo vindo de fora...

Refém da intolerância e do radicalismo como linha condutora do debate político interno, em Maio de 77, o mapa de Angola seria rasgado por um morticínio sem precedentes na história moderna de um partido político em África.

De consequências políticas e psicológicas trágicas, este acontecimento tornou o MPLA refém da destruição da espinha dorsal de parte substantiva da intelectualidade que passou a gravitar em torno dos seus ideais.

E tornou o país também refém do trauma provocado pelo assassinato de milhares de pessoas inocentes e pelo desencontro de muitas famílias angolanas.

Setembro de 83, na Jamba converteu-se no outro marco negro do nosso enclausuramento. Corria o ano em que os ventos do Sudeste foram literalmente trazendo os gritos de angústia e de desespero daqueles que, brutalmente queimados, desapareciam na fogueira. E um silêncio cúmplice enterrou todas as mortes deste período de trevas no Cuando-Cubando.

Ficaríamos reféns ainda da censura imposta durante onze anos ao filme de António Ole, "N"Gola Ritmos", do silenciamento da imprensa ou de expulsões e de vetos de admissões e nomeações no Estado de vária ordem. Passámos assim a ter medo de enfrentar um novo tipo de medo que se estendia agora às instituições públicas...

Com a institucionalização oficial do medo, desde os tempos do "campo da revolução", o rasto de fuzilamentos, de prisões arbitrárias, de inimigos internos, de torturas nas matas e de afastamento de gente honesta da universidade única e do emprego e a censura e auto-censura tatuaram de tal modo o pensamento dos políticos e governantes deste país, que Angola e os angolanos, até hoje, nunca mais voltaram a ser os mesmos...

Ao olharmos hoje para o nosso comportamento perante a história, assistimos à mudança de manequins na montra, mas o armazém guarda muita mercadoria em segunda mão sem qualquer utilidade.

Vivemos o presente, tentando marcar o futuro, mas o nosso olhar permanece ainda preso a um gigantesco retrovisor que continua a projectar o lado trágico do nosso passado.

Observando o nível de exposição crítica da nossa classe política rapidamente concluiremos que aquela continua a viver perdida no tempo como um fantasma à procura da sombra.

Foi assim, mais densamente até Agosto de 2017, com o império do medo. Da perseguição na penumbra. Da coisificação das consciências. Da imposição da via única. Da glorificação da lei da rolha. Da conformação da auto-censura.

Destapada a tampa assistimos à evaporação da liberdade e à explosão de um estado de descompressão geral da sociedade.

Destapada a tampa, assistimos à soltura de uma sofisticada vaga de robotização dos cidadãos, que conseguiu meter na cadeia até o próprio sistema de justiça.

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