Em Dezembro do mesmo ano, o Chefe de Estado angolano assegurou: "Reiteramos a determinação da sociedade, do Executivo e da justiça angolana em combater a corrupção e do nosso empenho de recuperar os activos ilicitamente adquiridos onde quer que se encontrem".

Apesar de João Lourenço reafirmar constantemente a sua determinação e empenho pessoal na "prevenção e combate à corrupção e impunidade", como um dos "pilares do novo paradigma de governação", os casos de corrupção que envolvem altos servidores públicos, incluindo membros do seu gabinete, sucedem-se em catadupa e marcam a dissonância entre o discurso e a prática.

Em Setembro de 2020, denunciado pela estação TVI portuguesa, rebentou o escândalo atingindo Edeltrudes Costa, ministro de Estado e director do gabinete do Presidente da República, acusado de envolvimento numa negociata que lhe terá rendido milhões de euros, num caso que consubstancia crimes de corrupção, nomeadamente tráfico de influência e desvio de fundos públicos.

Na ocasião, a TVI forneceu detalhes, exibindo facturas, contratos e outros documentos, explicando pormenorizadamente a forma ardilosa como uma empresa de consultoria de Edeltrudes Costa entrou no negócio de modernização dos aeroportos angolanos. Contratos públicos, autorizados pelo Chefe de Estado angolano, em adjudicação directa, sem qualquer concurso.Com os lucros desses negócios, reportava a TVI, o "braço direito" de João Lourenço comprou luxuosas casas em Sintra e Cascais, na região da Grande Lisboa.

De acordo com a investigação televisiva, Edeltrudes Costa fez vários negócios milionários com o Estado angolano, sendo apontado como titular de uma conta à ordem, com mais de 20 milhões de euros em Portugal.

Quase dois anos depois da denúncia, o homem de confiança do Presidente angolano nunca desmentiu, nem desencadeou qualquer processo judicial contra a TVI por calúnia ou difamação.

E Edeltrudes Costa mantém-se inamovível da direcção do Gabinete do Presidente que fez da "prevenção e combate à corrupção e Impunidade" um dos "pilares do novo paradigma de governação".

Envolvendo o nome da presidente do Tribunal de Contas, Exalgina Gamboa, neste ano, no início de Junho, em plena campanha eleitoral, foi divulgado outro escândalo que, como se tornou norma, também passa por Lisboa.

Inicialmente denunciado pela Newsletter Africa Monitor Intelligence (AMI) e retomado pelo Correio Angolense, esse novo escândalo surge na sequência da transferência de fundos do Tribunal de Contas de Angola do Banco Yetu para uma conta privada em Portugal em nome de Haile Cruz, filho de Exalgina Gamboa.

Adianta a AMI que as referidas operações, realizadas antes de Maio do ano passado, abarcavam 2,5 milhões de euros e meio milhão de dólares. Ao pedido de explicações das autoridades portuguesas, Haile Cruz terá atribuído a propriedade do dinheiro à sua mãe, Exalgina Gamboa.
As publicações citadas sublinham que Haile Cruz é filho de Rui Cruz, um fiscalista que preside à Imogestin Imobiliária pretensamente participada pela JALC - Consultores e Prestação de Serviços Limitada, empresa detida por familiares do Presidente João Lourenço.

Respeitando os procedimentos exigidos pelo Banco de Portugal contra o branqueamento de capitais e outros crimes financeiros, as autoridades portuguesas bloquearam a conta de Haile Cruz, antigo administrador do banco Yetu para as grandes fortunas, informando a situação às suas homólogas angolanas.

A publicação especializada em questões africanas assegura que a Procuradoria-Geral da República de Angola informou ao gabinete do Presidente João Lourenço de que foi "notificada pelas autoridades portuguesas acerca de transferências bancárias de contas do Tribunal de Contas para uma conta privada num banco português, em nome do cidadão angolano Haile Cruz".

Exalgina Gamboa, que se mantém impunemente na liderança do Tribunal de Contas, um dos principais instrumentos de "prevenção e combate à corrupção e impunidade", tal como Edeltrudes Costa, também se remeteu ao silêncio, deixando os angolanos sem qualquer explicação sobre a origem do dinheiro e as razões da transferência de milhões do Tribunal de Contas de Angola para as contas do seu filho, em Portugal.

Segundo o portal "Maka Angola", de Rafael Marques, a aquisição do edifício Welwitschia Business Center (WBC), por parte do actual ministro dos Transportes, Ricardo Veiga D"Abreu, ao seu amigo de infância Rui Óscar Ferreira Santos Van-Dúnem, por 91 milhões de dólares americanos, está também envolta em suspeição de corrupção e tráfico de influência.

Numa participação judicial à Procuradoria-Geral da República de Angola (PGR), Rafael Marques refere que o edifício será inadequado às funções para o qual fora adquirido. Parte do prédio destina-se à habitação.
"A queixa apresentada realça o valor aparentemente empolado do edifício. Os valores excessivos envolvidos nesta operação de compra e venda ficaram a dever-se à amizade e às relações de compadrio entre o ministro comprador e o amigo vendedor", escreve o Maka Angola.

Estes três casos envolvendo servidores públicos de estrita confiança do Presidente da República, que os nomeou para altas funções do Estado, representam uma machadada na cruzada de "prevenção e combate à corrupção e impunidade".

Os casos demonstram também a selectividade de um combate à corrupção que atinge, sobretudo, filhos e políticos ligados ao Presidente José Eduardo dos Santos.

Um combate que devia estar alicerçado na transparência como sua principal arma e, para tal, desencadeado por um Poder judicial acima de qualquer suspeita no tocante à gestão de dinheiros públicos e à aplicação das leis.

Porque a corrupção atrasa o desenvolvimento da sociedade, o seu combate deve passar por um Poder judicial independente, não manietado nem refém de subornos e de sumptuosas regalias proporcionadas pelo Poder político.

Um combate à corrupção que deve ter uma imprensa livre como seu aliado indispensável para que experimentados repórteres consigam, para lá da carcaça, identificar e denunciar os tentáculos e a densidade corporal de "caranguejos".

Um combate à corrupção que, para merecer credibilidade, devia passar pela publicitação das declarações de rendimentos e de património dos políticos e outros servidores públicos. A todos os níveis.
Mais importante do que estabelecer normas que impeçam os governantes de viajar para o estrangeiro em período eleitoral, era necessário criar mecanismos rigorosos que impedissem a transferência para o estrangeiro de recursos nacionais por parte de gestores e instituições públicas nacionais.

Também seria importante definir inultrapassáveis incompatibilidades entre a actividade empresarial e o desempenho de cargos políticos e judicias, em nome da lisura e da clareza dos papéis.

Sendo a corrupção um fenómeno que devia ser tipificado como "crime contra a Humanidade" pela miséria que causa aos povos e países atingidos e pela inversão da verdade política (incluindo eleitoral) e social dessas sociedades, as lideranças políticas deviam dar o exemplo publicitando os seus rendimentos e património.

O exemplo ético não precisa de esperar por legislação, tal como as iniciativas tendentes a aproximar os eleitores aos eleitos, fundamentais para melhorar o ambiente político e social e combater a crispação na sociedade ao mesmo tempo que servem de facilitador da construção do tão propalado "novo paradigma de governação".

Numa sociedade de intolerâncias, desconfianças e suspeições permanentes, a actualização e a publicitação voluntária das declarações de rendimento e de património dos candidatos às próximas eleições, a começar pelos cabeças-de-lista, seriam um grande contributo ao combate à corrupção.

Talvez Angola não tenha (ainda) as condições da Finlândia para criar o "Dia da Vergonha", data em que os todos os rendimentos dos cerca de seis milhões de finlandeses são publicitados, mas é possível e seria importante que fossem divulgados os rendimentos e património de políticos, juízes, magistrados e jornalistas.

Porque, como escreve Rafael Marques, "foi importantíssimo anunciar uma política de combate à corrupção e de moralização do Estado. Mas, se esta intenção não tiver correspondência com passos efectivos no aparelho institucional, então no final restará apenas frustração acumulada".

Sem transparência e exemplo ético e republicano, justiça independente e comunicação social livre, será impossível "prevenir que venham a acontecer (actos de corrupção) hoje ou amanhã", como defende o Presidente da República.