Pierre Webó, 38 anos, camaronês, treinador-adjunto da equipa turca de futebol Istanbul Basaksehir, foi insultado de forma racista pelo árbitro romeno Sebastian Coltescu, que o chamou de "o negro", a 8 de Dezembro, em Paris.

No caso do assassinato de Ihor Homenyuk, houve uma tentativa de encobrimento do homicídio "ao mais alto nível", segundo o diagnóstico do caso, feito pela Inspecção Geral da Administração Interna (IGAI) de Portugal.

Esta atrocidade consubstancia uma grosseira violação de muitos dos direitos fundamentais da pessoa humana, a começar pelo mais importante de todos: o direito à vida, seguido de outros, como o direito à liberdade, à segurança, à não ser torturado e o direito a um processo equitativo.

Resultado da cultura de impunidade e abuso de autoridade reinante entre as forças de segurança, o bárbaro homicídio encontra complacência de parte da classe política portuguesa, que continua a recusar o escrutínio democrático sobre a actuação dessas forças.

Esses políticos começaram por minimizar o horrível acontecimento, numa vã tentativa de evitar os estragos internos e externos causados pelo homicídio, ocorrido no Centro de Instalação Temporária do aeroporto, local tido como antro de violência contra estrangeiros impedidos de entrar em Portugal, como Ihor Homenyuk.

No elaborado plano de encobrimento do homicídio, os seus autores, certamente, pensando em crimes perfeitos e habituados ao estatuto de "impunes", contaram com o conluio de um médico, a quem coube a tarefa de atestar, em relatório, a "morte súbita" de Ihor Homenyuk.

Foram precisos nove meses para que o Estado português assumisse, de forma tímida, a responsabilidade política no caso e decidisse pela criação de condições conducentes à indemnização da família do ucraniano, depois de terem transmitido às autoridades de Kiev a versão arquitectada pelos torturadores.

A reacção das autoridades portuguesas surge após o puxão de orelhas da União Europeia, nomeadamente de Ylva Johansson, comissária europeia para os Assuntos Internos, que, em Lisboa, considerou o homicídio "horrível violação dos direitos humanos".

Em conferência de imprensa, a enviada de Bruxelas lembrou que se "nem toda a agente pode ficar na União Europeia", os que são impedidos de entrar "continuam a ser seres humanos, têm dignidade e direitos e têm de ser tratados como tal", numa reprimenda difícil de engolir.

Este caso serviu para destapar a desumanidade reinante no referido centro, onde, repetidas vezes, crianças estrangeiras são deixadas a dormir no chão sobre a sua própria urina e cidadãos africanos, brasileiros e outros são vítimas de tortura.

Quantos estrangeiros foram torturados neste espaço antes e depois do assassínio de Ihor?

No Parque dos Príncipes, em Paris, jogava-se o minuto 16 da partida entre as equipas Paris Saint Germain (PSG) e o Istanbul Basaksehir, a contar para a última jornada da fase de grupos da milionária Liga dos Campeões Europeu, quando o árbitro Sebastian Coltescu, ao mostrar o cartão vermelho ao camaronês Pierre Webó, identificou-o como "o negro".

Depois de acesa troca de palavras com os árbitros romenos, a equipa técnica turca decidiu que o clube só regressaria ao campo, para continuar o desafio, se Sebastian Coltescu fosse afastado. Prontamente solidário, o PSG também se recusou a prosseguir com o jogo.

As duas equipas abandonaram o campo, numa decisão inédita, protagonizando, desta forma, a mais contundente e estrondosa acção contra o racismo no futebol europeu, fazendo jus ao slogan da UEFA "Diga não ao racismo"

Imediatamente, a UEFA agendou o jogo para o dia seguinte, nomeou outra equipa de arbitragem para a partida e anulou o cartão vermelho que impediria Pierre Webó de se sentar no banco da sua equipa.

Se no caso do ucraniano estamos perante um assassinato com contornos xenófobos, praticado por representantes do Estado, no segundo está-se perante um insulto racista por parte de um dos juízes do jogo.

Os dois actos graves mereceram reacções diametralmente opostas, em que, incompreensivelmente, o horrendo assassinato teve a mais branda das reacções, traduzindo a desvalorização do incidente.

"O que revela o que somos é a forma como lidamos com isso (actos de violação de direitos humanos) e como respondemos e as lições que tiramos." Ou seja, "a resposta é muito importante", resumiu de forma peremptória Ylva Johansson.

Em Paris, a imediata e determinante solidariedade do PSG de Neymar e Mbappé, a mediatização e politização do caso um pouco por todo o mundo contribuíram para a célere reacção da UEFA.

Se o racismo é uma questão política, a sua normalização também o é, sobretudo quando se trata de racismo estrutural, como acontece em várias organizações e sociedades europeias, com destaque para Portugal.

Enquadram-se nessa naturalização da discriminação a minimização de insultos racistas com expressões do género "hoje está muito na moda isso do racismo" ou "qualquer coisa contra um preto é racismo", como fez Jorge Jesus, treinador branco do maior clube de futebol de Portugal, o Benfica.

Essa atitude mostra como a normalização do discurso racista, do ódio, é o primeiro passo para a impunidade dos racistas e xenófobos, dando força aos que praticam a violência e a tortura.

Jesus faz parte dessa plateia que vê na normalização do racismo o meio de sobrevivência da "sua" espécie e que encontra respaldo numa classe política que convive alegremente com partidos promotores do racismo e do fascismo e que, por acção ou omissão, incentivam tais práticas.

Das palavras de Jorge Jesus, é fácil concluir que se, em vez do PSG, o Basaksehir tivesse o azar de defrontar o Sport Lisboa e Benfica, teria averbado automaticamente uma derrotada por três/zero, e a Humanidade perderia um grandioso gesto de combate ao racismo.

Enquanto o mundo vai decretando Tolerância Zero ao racismo e à xenofobia, em Portugal são as autoridades a tentar contribuir para a impunidade de quem pratica tortura e violência sobre as minorias e os imigrantes.

Em Portugal, onde o estrangeiro, o imigrante e as minorias são tidos como potenciais criminosos, esse episódio, longe de constituir um acto isolado, traduz um problema sistémico.

Para defender o seu nome e prestígio, a UEFA, dirigida pelo esloveno Aleksander Ceferin, agiu com rapidez e transparência.

Por seu lado, Portugal tentou evitar as consequências e repercussões do caso, preocupado, sem dúvida, em preservar a falácia de país dos brandos costumes, exemplar no tratamento aos imigrantes.

Num país onde os políticos ao mais alto nível falam até à exaustão sobre tudo, o silêncio das mais altas entidades do Estado, só quebrado nove meses depois do ralhete público de Bruxelas, prova a tentativa de transformar a tortura de Estado em fait divers.

Silêncio tácito inadmissível em Democracia, porque "quem é neutro em caso de injustiça escolhe o lado do opressor", como nos ensina Desmond Tutu.

Talvez falte a Portugal assumir, como País, o papel de promotor permanente de uma campanha, baseada num plano contra o racismo e a xenofobia, envolvendo as principais figuras do Estado.

Porque, como afirma a advogada portuguesa Rita Pereira Coutinho, "Portugal não é o país dos brandos costumes, é racista e xenófobo".