A conversa começou com o relato de umas dores reumáticas de que a senhora começava a padecer, no ano fatídico, e que levaram a família, por conselho de um dos seus membros que era médico, a consultar o grande Professor Nuno Grande, figura lendária da faculdade de medicina da ainda Universidade de Luanda. Lá trouxeram a senhora, que, aliás, era auto-suficiente, e fizeram-na presente ao douto Professor, que mais não fez do que se maravilhar perante o estado de conservação, a todos os títulos espantoso, da venerável anciã, exclamando:
- Oh! minha senhora, se na sua idade apenas se queixa de umas dores reumáticas, a senhora é que me tem que dar a sua receita!
Receitou uns comprimidos, claro, e mandou-a em paz, de regresso à sua região natal.
Como nos contam as estórias desse período histórico - confirmadas pela memória dos que o testemunharam -, com a proximidade da independência exacerbaram-se as contradições entre os vários actores políticos no país, crescendo um clima de intolerância e ódio, que descambou no conflito armado que tanto afectou o país, e que só viria a terminar em 2002.
No retalhar do território, o Ambriz ficou sob o controle de um dos signatários dos Acordos de Alvor, que, aliás, e depois da sua falhada tentativa de chegar a Luanda, a 10 de Novembro, ali procurou organizar um arremedo de proclamação, no dia 11, que tão bem é descrito nos dias de independência de Onofre dos Santos.
A referida senhora, e grande parte da sua família, ali estavam, suportando a frustração de quem pensara ter a força militar para impor a sua bandeira (que bandeira?) na data em que o colono se iria retirar - o que realmente aconteceu, sem pompa nem circunstância - de Luanda, e que desconseguira.
Nos dias seguintes, desenvolveu-se a ofensiva militar das forças do, agora, governo de Angola, e as forças derrotadas abandonaram o Ambriz, rumo ao norte do país, levando consigo a população. Fizeram-no a pé, numa coluna heterogénea, com velhos e crianças. A bisavó integrava-a.
Na zona da Musserra, ela já não podia mais, e um dos netos foi pedir a quem comandava o grupo em fuga, para os deixar ficar ali.
- Mas vêm aí os cubanos!!, retrucou o personagem.
O neto insistiu que se esconderiam na floresta, e procurariam sobreviver, pois não tinham como continuar. No que pareceu ser um arroubo de bom-senso, foi dada ordem para que quem não quisesse prosseguir se separasse do grupo. Assim fez uma parte da coluna, onde se encontravam mais de quatro dezenas de familiares da senhora.
... E o inesperado e dantesco acto foi perpretado... e os corpos ali jazeram, insepultos.
Uns anos depois, na sequência dos primeiros passos na procura da paz e reconciliação, esse meu amigo, como funcionário do Estado, teve que "acolher" o mandante do massacre.
A História de um país faz-se de cadáveres, determinação e amor.