A sua indicação em 1988 para substituir Tito Chingunji na chefia da missão da UNITA na capital dos EUA, obrigou-o a refinar a sua mensagem. A Tito, que também era secretário dos Negócios Estrangeiros, se devia o lançamento da agenda que levara a UNITA a estabelecer-se em Londres e em Washington. Por conseguinte, a Jardo não se punha apenas a necessidade de continuar a advogar a substituição de um regime de partido único, apoiado por Moscovo, por um regime multipartidário, A saída traumática de Tito Chingunji e a sua posterior execução, assim como de toda a sua familia, colocaram a UNITA, particularmente a sua delegação em Washington, perante um problema. Como advogar a favor da democracia, se no seu próprio quintal se executavam pessoas? Além de ser, depois de Jonas Savimbi, o maior activo da UNITA no exterior, Tito era originário de uma família com muito peso na história do seu partido. E ironicamente Jardo ia trilhar os caminhos que haviam sido desbravados por Tito Chingunji, a quem servira como adjunto em Londres.
Jardo ver-se-ia novamente à prova em 1991, quando a administração Clinton e o Governo de Angola chegaram a um acordo para a abertura de escritórios de representação nas respectivas capitais. José Patricio iria liderar a Embaixada de Angola na Organização dos Estados Americanos, título que lhe dava protecção diplomática, enquanto que Jeffrey Millington chefiaria o escritório de interesses dos EUA em Angola, coberto também por um estatuto diplomático. A chegada de José Patrício a Washington constituiu uma viragem nas articulações entre Luanda e Washington. Além de ter sido membro da equipa do Governo que negociara os acordos de paz com a UNITA, José Patrício tinha o benefício de até ai, ter sido membro do gabinete de José Eduardo dos Santos. E isso era muito importante tanto no acesso ao próprio presidente, como no acolhimento que encontrava nos EUA.
Com a presença de José Patrício em Washington, o governo de Angola passava a ter a oportunidade de chegar a todas as portas, à mesma altura que a UNITA, ou antes, quando fosse o caso. Washington deixava de ser reduto da UNITA. O recurso a lobbies e o benefício de anos de estrada, garantiriam a Jardo Muekália acesso a gabinetes relevantes. Um novo teste se lhe colocaria em 1993. E dessa vez não era pouca monta. Em Setembro desse ano, no seguimento da aprovação pela ONU, da Resolução 864, que impunha sanções à UNITA, o presidente Bill Clinton assinou o Decreto Executivo 12865, (Executive Order 12865) o qual classificava a UNITA como uma "ameaça invulgar e extraordinária à política externa dos EUA". Se alguns anos antes Washington deixara de ser terreno favorável à UNITA, a partir dai passou a ser um campo em que a UNITA entrava sempre com um jogador a menos. A substituição de José Patricio, por França Ndalu, em Setembro de 1995, iria ser uma indicação de que JES queria continuar a manter em Washington, pessoas ligadas a si e ao acordo de paz. E isso também tinha a sua relevância. Em Washington, nada ficava para amanhã. Tudo era para hoje. Tal como José Patrício, França Ndalu não só tinha participado nas conversações de paz, como gozava de acesso irrestrito ao gabinete do presidente. Também tinha a seu favor o facto de até à sua nomeação ser o representante do governo na CCPM, Comissão Conjunta Politico Militar, órgão responsável pela implementação dos acordos de paz.
Vi Jardo Muekalia pela primeira vez em Setembro de 1991, quando, como enviado especial do "Jornal de Angola", cobri a primeira visita do Presidente José Eduardo dos Santos à Casa Branca. Lembro ver ele e Marcos Samondo, representante da UNITA em Nova Iorque, entre os convidados de um encontro promovido pela Câmara de Comércio dos Estados, no qual JES seria o principal orador. O Presidente iria falar sobre a transição para uma economia de mercado. Ao todo, havia mais de duzentos convidados. Também reconheci o reverendo Jessie Jackson e Ronald Rosenthal, presidente da Transafrica, importante companhia controlada por proeminentes famílias negras. O encontro, tal como como a viagem em si, era uma novidade para todos. JES era um homem habituado à solenidade de grandes eventos e à imponência de espaços de poder. Porém, a conquista de audiência nos EUA não só passava pelo que discutira horas antes com George Bush, no reputadíssimo Salão Oval, mas também pelo que iria dizer em duas dissertações. Na primeira ia ter diante de si estudantes da respeitada Universidade de Georgetown; depois teria pela frente uma audiência composta por homens da alta finança. Ao fim e ao cabo, tratava-se da conquista da cidade mais poderosa do mundo, como lhe chamaria John Thompson, treinador de basquetebol feito radialista. No despacho que fiz para o "Jornal de Angola" a 18 de Setembro de 1991, escrevi o seguinte a respeito do encontro promovido pela Câmara do Comércio dos EUA: O Presidente José Eduardo dos Santos apelou a uma participação mais activa dos empresários norte-americanos na economia de Angola. "Queremos que empresas americanas façam parte do nosso futuro. Precisamos de capital, de tecnologia e da vossa experiência". Essas declarações geraram consultas com empresários, mas como se calcula, não houve nenhuma interação entre os membros da delegação presidencial e os representantes da UNITA. O que se viu na sala a esse respeito, parecia ser uma réplica do que acontecia no "terreno". "Os de Luanda de um lado, e os da UNITA, de outro".
O tempo e as circunstâncias da vida haviam de nos tornar acessíveis um ao outro. Encontra-mo-nos cara a cara pela primeira vez, em Abril de 1995, à entrada do aeroporto doméstico de Washington. Após um "jogo de tabelas" com Luís Costa Ribas, que eu meses depois iria substituir na sede da Voz da América, Jardo aceitou encontrar-se comigo. Estou a vê-lo chegar com o Dinho, ou Jardinho, seu filho mais mais novo.
Em Outubro de 1995 quando me tornei "staffer" da Voz da America, em Washington, Jardo estava na fase de execução de serviços mínimos e de pagamento das contas que podiam ser pagas. As sanções obrigaram-no a aprender a viver sem o amparo que sempre tivera em Washington, e sem os mesmos fluxos financeiros.
Depois do encerramento formal do escritório da UNITA teve várias ocupações, entre as quais a docência. Ultimamente estava ligado à ID, uma gestora de acessos a plataformas oficias do governo norte-americano.
Uma coisa me chamou à atenção na primeira vez que fui ao seu escritório na famosa K Street, em Washington. Jardo tinha bem visíveis fotografias com os presidentes Jimmy Carter, Ronald Reagan, George Bush e Bill Clinton, e também com vários congressistas.
Uma das conversas mais extensas que tivemos, aconteceu em 2010, após ele ter publicado, "Angola, A Segunda Revolução" ( Sextante 2010), um livro que lhe valeu um asco por parte de membros da UNITA, que o viram como estando a expor o que não precisava de ser exposto. A publicação de um livro dessa natureza, com a sua assinatura, acabou por ser uma "validação" do que outras vozes já haviam dito. Apesar de se demarcar da cruzada que dizimou a familia Chingunji e outras, o livro não foi necessariamente celebrado pela família Chingunji. Não tem a descrição permonorizada e aterradora, nem a força denunciadora que encontrei nos livros de Bela Malaquias (Mayamba 2020), de Dinho Chingunji (2022), ou a repulsa com que Fred Bridgland (Jonathan Ball Publishers, 2022) "corrige" coisas que com a ajuda de Tito Chingunji, escrevera na primeira biografia de Jonas Savimbi. Em todo o caso, o que ele partilhou, não é, nem por isso de importância. A publicação desse livro foi acima de de tudo, o primeiro sinal público do desconforto que lhes causaram os casos da familia Chingunji e outros.
Alguns depois após o encerramento do escritório da UNITA, já mais disponível, Jardo escreveria um segundo livro, nomeadamente "the Price of an Amercan Dream", (Xlibris 2014).
Jardo revelara-se também cirúrgico nas observações que fazia, as quais reflectiam o que se ouvia em alguns corredores. Algumas dessas questões continuam a fazer parte das preocupações norte-americanas, nomeadamente, o controlo de passaportes angolanos, a influência de PEPs,"pessoas politicamente expostas", na banca comercial angolana, e a necessidade de se nivelar o campo de jogos. "Não pode continuar inclinado como está."
Estivemos juntos pela ultima vez, a 29 de Outubro deste ano, na clínica cubana, Meditex, em Luanda, para aonde ele e eu corremos à procura de cura para mazelas diferentes. Ironizamos um com o outro, com o facto de dois angolanos residentes em Washington, que não se viam desde Maio, se encontrarem numa clínica cubana em Luanda. Tal como eu, ele também tinha boas referências da clínica. Conversámos também da sua decisão de aderir ao PRA-JA, anunciada semanas antes. Dizia ele que a sua decisão não podia ser uma surpresa para mim. E não foi. Surpresa foi a noticia da sua morte! Combinamos um outro encontro, fora dos ditames de uma clínica, mas infelizmente isso já não acontecerá. n
*Redactor e produtor da Voz da América em Washington (1995-2025)
Jardo Muekália, (1959-2025) O homem que dominava Washington
Tenho de Jardo Muekalia, a imagem de um homem que conhecia Washington como poucos. Atrevo-me a dizer que à data da sua morte, 12 de Dezembro, politicamente falando, Jardo Muekália, antigo representante da UNITA em Washington, era o angolano que melhor conhecia os circuitos do poder naquela cidade. Casa Branca, Congresso, Departamento de Estado, Pentágono, "Think Tanks", grupos de pressão, eram parte do seu itinerário.

