O Congresso, acontecendo nessa altura, foi uma boa maneira de sinalizar o 50.º aniversário da Independência Nacional, sem festança, opulência e soberba, mas através de um exercício de reflexão e crítica sobre os destinos de Angola, num ambiente de urbanidade e respeito mútuo.
A reconciliação é uma necessidade porque quis a desgraça histórica de termos extremado posições a ponto de se enveredar por uma guerra civil. Obtida a Paz, a reconciliação apresenta-se como continuidade necessária, sem a qual não é possível a consolidação da paz, sem a qual a paz das armas não dá lugar à paz dos espíritos.
Essa reconciliação pode ser feita sob o império da guerra, da pax romana ou sob a renegociação do contrato social. A primeira limita-se à tolerância da presença do Outro na vida social (escolas, festas, óbitos, clubes...). Mas esta reconciliação corresponde à condição mínima da reconciliação nacional. Essa reconciliação mínima é uma reconciliação guetizada, não atinge a existência vital do ser angolano. A reconciliação precisa dar lugar a um ambiente completamente distinto, sem que seja apenas através de formas de cobertura e dissimulação. Tem que operar uma mudança dos modos de relacionamento do poder com a sociedade, através de uma mudança no exercício da violência legítima, dos modos de estar e ser no espaço público, em que os aparelhos ideológicos do Estado se colocam ao serviço da sociedade e da mudança das mentalidades. Por isso, a segunda forma de reconciliação implica a aceitação recíproca plena, na base de uma alteridade positiva presidida pela emulação.
É que a guerra civil é um conflito armado no seio da própria comunidade que se baseia numa alteridade negativa, em que há uma exclusão recíproca, através da diabolização mútua. No caso de Angola, foi também a expressão de uma crise de identidade, a manifestação de um conflito violento de narrativas sobre a identidade nacional. Por isso, a Guerra Civil pressupunha e efectivava (o que lhe é conatural) uma compartimentação do País entre: "nós e o inimigo". Na Guerra Civil a vida era pautada pela lei da violência, da intolerância, da linguagem da força, da exclusão do Outro. Mesmo que a Guerra Civil seja agora apresentada, por alguns, como um "pecado colectivo", este consubstancia-se, num plano empírico e tem uma origem que deve ser explicitada, para devolver sentido a essa prática de anulação violenta recíproca.
A reconciliação nacional é radicalmente o seu contrário; é um processo de aceitação própria e mútua, de inclusão e de alteridade positiva, em que a disputa se faz, não pela negação do Outro, mas pela afirmação de si mesmo, no respeito do Outro e das regras comuns de vida e de competição, em emulação. Uma reconciliação que se preze, que seja digna desse nome, tem que acabar de forma radical com a compartimentação guerreira.
A reconciliação é a conciliação, a harmonização das diferentes narrativas sobre identidades que se impunham, pela força, desde os movimentos de libertação nacional, como constituídos por "angolanos genuínos", sendo "únicos e legítimos representantes do povo". A reconciliação nacional não pode deixar de ser um exercício de alteridade! De dupla alteridade: alteridade no interior de si mesmo e alteridade em relação ao Outro. Há uma relação estreita entre reconciliação e alteridade que se manifesta através da passagem do modo e do estatuto de pessoas amorfas - que querem apenas fazer a sua vida, como povo em geral, sem nenhuma concretude, ao nível das relações do Estado e deste com a sociedade - a actores sociais activos, isto é, a cidadãos. Pois, a reconciliação corresponde a uma compartimentação da sociedade composta de entes iguais, fora de uma atmosfera de submissão e inibição, de violência física ou verbal. Ou seja, a Reconciliação Nacional demanda a igualdade (e equidade) de direitos, num espaço comum de cidadania, o que implica o fim da segregação social como ideologia do partido-Estado (do país-MPLA).
Mas, a reconciliação é uma construção que tem que ser colectiva, tem de resultar da aceitação mútua, da colaboração edificante da Nação, como espaço de desenvolvimento de um destino comum. E, se a reconciliação nacional tem de ser o resultado da reconciliação do EU-angolano, em si mesmo, aceitando-se na sua formação plural, tem de ser feita por actores concretos, por pessoas de carne e osso. A reconciliação não pode ser encarada como uma mera abstração filosófica. É verdade que a reconciliação é também um momento crítico da Nação ou, pelo menos, da emergência de uma consciência crítica, particularmente naqueles que foram protagonistas da Guerra Civil, em relação ao seu papel nesse acto de violência sangrenta que foi destruidor das coisas e dos homens. Mas, mesmo que a filosofia histórica seja necessária para compreender a inteligibilidade dessa crise, estamos perante actores sociais concretos que, diminuídos nos seus direitos, precisam de ver crescer a sua cidadania e humanidade.
Por isso, a reconciliação nacional, sendo uma exigência social, é também um drama existencial, de sentido contrário, para dois grupos distintos; o primeiro constituído por todo o povo (que quer uma vida cívica integral e completa) e o segundo formado por todos aqueles que detêm o poder hegemónico e alimentam o medo de o perder. Por isso, os representantes deste grupo se mostram esquivos em relação à reconciliação nacional. Logo, a reconciliação implica a busca de um equilíbrio e de garantias entre os protagonistas e de um processo de aquisição de confiança.
A reconciliação precisa de promotores da sua concretização, nos dois sentidos: indo de cima para baixo e de baixo para cima. E, por isso, também, a institucionalização das Autarquias é muito importante para a realização da reconciliação nacional, porque é um espaço objectivo de realização da cidadania (e da Independência) a um nível de poder controlável por aqueles que alimentam receios em relação à aceitação da ideia de alternância no poder central.
O Congresso Nacional da Reconciliação mostrou que a consciência nacional exige a sua plena realização por um alargado movimento de reflexão crítica, pois, a consciência sintética destes cinquenta anos de país independente explicita conteúdos e a acção de pessoas a que se quer atribuir valor transcendental que não correspondem às utopias dos mais-velhos, nem às expectativas das novas gerações, porque não estão baseados na verdade dos factos históricos que foram soberbamente camuflados, em conluio conjunto e conveniente.
Reconciliação e alteridade
A CEAST promoveu um Congresso Nacional de Reconciliação, nos dias 6 e 7 de Novembro de 2025. Estavam lá todos os Bispos católicos e mais outros dignatários das demais denominações cristãs (metodistas, evangélicas, adventistas...) e ainda clérigos, religiosas e representantes das organizações femininas dessas igrejas, para além de leigos, notáveis, deputados, titulares públicos, autoridades tradicionais, líderes de partidos (parlamentares e extraparlamentares) e outras personalidades políticas, oficiais generais e membros dos órgãos de defesa e segurança, de associações e pessoas dos diversos ramos profissionais e do saber; totalizando cerca de 600 congressistas, na sala, e mais cerca de 300 online que representavam um extracto significativo da sociedade angolana.

