Os poucos candeeiros, alimentados por fontes energéticas térmicas, destinam-se à iluminação da Administração Municipal e da esquadra policial. Um silêncio quase sepulcral passeia-se pelas ruas do município ou, melhor, pela única estrada asfaltada que o colono deixou há quase meio século. De lá para cá, é como se a pequena vila colonial tivesse parado no tempo e no espaço.

Alguns geradores e o roncar de um outro veículo motorizado quebram a quietude da noite.

Na pequena pensão onde me hospedo, que dizem ser a melhor do município, não há internet. Procuro pelo sinal da TPA, sem sucesso. Há uns anos que o Cuango não recebe o sinal da TV estatal que, como dizem, à boca grande, é televisão de "todos nós". Soube que uma das peças da antena de recepção do sinal foi levada para o Dundo, a fim de ser reparada. Volvidos vários anos, tudo aponta que alguém se esqueceu de devolvê-la à procedência.

Desperto aos primeiros raios solares que tocam e penetram suavemente pela adentro janela do meu quarto. Num ápice, enfio-me num fato de treino, calço as sapatilhas e saio à rua a caminho da única estrada pavimentada do município, a EN 225, a mesma que liga ao Cafunfo, o nome de uma localidade de triste memória que até há pouco tempo esteve nas bocas do mundo pelas piores razões.

Desço o declive acentuado em aproximadamente 25 -30%, cruzo a primeira ponte sobre o Cuango, que serve de fronteira natural e administrativa com o município de Xá-Muteba.

Durante a caminhada, respiro ar puro, livre de cheiros pestilentos causados pelos resíduos sólidos e pelo escape descontrolado dos veículos automóveis; sinto-me livre da poluição sonora, sobretudo dos altos decibéis dos aparelhos sonoros dos "azuis e brancos". Entre subidas e descidas, atravesso a segunda ponte sobre o Cuango. Uma beleza que enche os olhos de admiração.

De regresso à sede do município, detenho-me por largos minutos sobre a ponte do Cuango. Fixo a linha do horizonte, procuro descobrir o local da bifurcação do rio, onde o Cuango faz a separação das águas, abrindo-se em dois longos braços.

O Cuango remeteu-me para a célebre romance de Castro Soromenho que, em "Viragem", um dos clássicos da nossa literatura, o consagrado escritor descreveu as relações de amor e ódio, do bem e do mal entre o rio e os habitantes locais. Ou, por outras palavras, o amor-dos-homens e a sua ira pelo grande rio, cheio de segredos e mistérios, dos naufrágios e inundações.

O rio trouxe-me à memória a morte do velho Ruanda, o "pai dos canoeiros do Cuango" e exímio contador de histórias que fora tragado pelas águas fluviais quando fazia a faina da pesca.

Da descoberta do corpo deste pescador, 10 dias depois do seu desaparecimento, em estado avançado de putrefacção, com o sexo e o rosto já esfacelados pelos urubus; das centenas de pescadores, barqueiros, dos tocadores de atabaque, de pessoas vindas de várias partes distantes do Cuango para render uma prolongada homenagem ao pescador porque, segundo o autor da obra, o " povo do rio queria que a festa do seu morto fosse grande e deixasse a fama em toda a região".

À memória veio-me o ritual fúnebre, que durou "10 dias e 10 noites", que só foi interrompido pelas autoridades coloniais, pois estas queriam que os locais dessem o corpo do velho Ruanda à terra, a fim de ser sepultado, mas os nativos recusaram-se alegando que o corpo do velho Ruanda tinha de ser dado ao rio. E foi isso que eles fizeram porque consideravam o maior dos pescadores um filho do rio, apesar de o Cuango ter bebido