O congresso apontou um fenómeno interessante, que se resume na citação seguinte: "Os Intelectuais adoçaram, os Políticos agitaram-se e o Povo aguarda pelas Autarquias Locais (AL)". O povo espera e devemos estar conscientes de que não se pode resistir às Mudanças; de mudanças que apontam para a justiça e concórdia. Os académicos devem envolver-se mais pela causa do povo, procurando soluções com objectividade, trazendo ideias desapaixonadas com ideologias políticas.

Um dos temas que estiveram na forja prende-se com a Organização da Administração Local, com enfoque sobre as Autarquias Locais, que se quer para já e, na opinião de muitos, em todo o território nacional.
Essa situação faz lembrar a expressão do escritor angolano Manuel Rui (1982): "Quem me dera ser onda", nas suas memórias de uma sociedade alienada pelo sistema colonial e dos tempos de convívio em plena harmonia dos angolanos. É essa harmonia que se deve buscar.
Revisitando alguns Momentos de vida dos angolanos, de 1975 a 1991 experimentou-se o sistema socialista.

No intervalo de quase uma década e meia foram feitas algumas reformas, com destaque para o Programa de Reformas, denominado "Saneamento Económico e Financeiro" (SEF), em 1987, cujas mudanças profundas conduziriam à democracia representativa e com a aprovação da Lei n.º 17/90, de 20 de Outubro, sobre os Princípios a observar pela Administração Pública. Em 1992 foi promulgada a Lei n.º 23/92, de 16 de Setembro, Lei de Revisão Constitucional, em razão das alterações introduzidas à Lei Constitucional em Março de 1991, através da Lei n.º 12/91, destinando-se à criação das premissas necessárias à implementação da democracia multipartidária, a ampliação do reconhecimento e das garantias dos direitos, liberdades fundamentais dos cidadãos e a consagração de princípios basilares da economia de mercado.
Olhando para o cenário internacional, a ideologia nazista de Adolfo Hitler também criou as AL, na vigência do nazismo, considerado como um subtipo do Estado moderno, característico do nosso século, isto é, o Estado Constitucional do século XX.

Verdade, porém, o nazismo foi uma verdadeira camuflagem. Sendo o nazismo um subtipo do Estado Constitucional, nem mesmo conseguiu concretizar os aspectos políticos principais caracterizadores do Estado Constitucional, como: a aclamação do princípio da legalidade. Na verdade, o nazismo tornou-se num dirigismo, tendo o Estado assumido vastas funções de empresário económico público, apropriando-se dos meios de produção colectivos. Nesse tipo de Estado, pensamos nós, devia prevalecer a Constituição, mas o Estado Constitucional nem sempre é sinónimo de limitação do poder, porque, muitas vezes, se transforma numa forma de legitimação do arbítrio estatal.

O que não se pretende em Angola é a implementação de AL que seja uma miragem e, do exposto acima, tira-se a ilação de que, se podia criá-las na vigência do Regime Socialista, que se implementou atrevidamente naquela fase. Por felicidade, na Lei de 1992, estava, de igual modo, prevista a institucionalização das Autarquias Locais.
Porém, de 1992 a 2002, os angolanos continuaram a viver um estado de guerra e, nesse período, não se podia falar de Autarquias Locais. Em 2010, foi aprovada a Constituição da República de Angola (CRA), e decorridos mais 10 anos não foram implementadas as AL.

Podiam ter sido criadas, mesmo em condições de Partido único, Estado centralizado e poder concentrado, quando não existiam entidades públicas autónomas face ao Governo Central, com uma burocracia estatal e inexistência de direitos fundamentais dos cidadãos, oponíveis ao Estado, entre outros aspectos. Presentemente, seria apenas uma adequação às condições do multipartidarismo.
O que faltou? É simplesmente uma questão de contextos e, se calhar, de visão estratégica, de planos devidamente desenhados a médio ou a longo prazo, relativamente à desconcentração e descentralização administrativas.

Logo, até 2017 existiram várias iniciativas que apontavam para as políticas de transferências monetárias e de competências das províncias para os municípios, em forma de ensaios. Por analogia, pode-se deduzir que, ser e dever ser, estar ou saber estar são colocações diferentes, assim como a verdade formal se difere da verdade material e da sua concretização. Assim como é defensável dizer que, quer nos sistemas socialista ou capitalista, em democracia ou não, podem ocorrer melhorias, aliás o demonstraram os factos em alguns Estados a nível global. É uma questão de visão estadual, de previsão política e de execução da própria política escolhida. Não obstante a vigência do Constitucionalismo, até hodiernamente, em muitos casos assiste-se a uma verdadeira ilusão e continua a sê-lo em vários países de África. Daí ser útil o adágio de que, "por vezes na boca do lobo é onde se está melhor", visto que nem mesmo nas democracias
actuais estamos todos seguros.

Lembrem-se de que, alguma vez na história da humanidade, o poder estava nas mãos da Igreja, depois passou para o Imperador, a seguir transpôs-se para o Povo, com a ascensão do Estado Romano. Presentemente, em pleno século XXI, a natureza sofre
com as acções humanas. De forma descontrolada, o mundo sangra com guerras incessantes, com a miséria e conspirações entre Estados. Lamentavelmente, tal ocorre igualmente nos denominados Estados de Direito e Democráticos.

Por várias razões e com liberdade, o povo questiona-se: se em período de economia
centralizada não foram criadas as AL, com o regime de economia aberta, certamente as
mesmas serão criadas - mas o que nos garante que com elas estaremos melhor!? A população, igualmente, vaticina e indaga-se dizendo: "no contexto actual, o poder reside afinal em quem?" Se se atender que até as Nações Unidas não conseguem impor-se, as instituições regionais e a União Africana quase que não se fazem sentir? Diante do dilema, convém repensarmos que democracia se pretende instaurar. Não adianta imitarmos, devendo evitar-se improvisações.

É consensual que a institucionalização das AL encontre conforto no sistema de economia aberta, em Estado Democrático e de Direito, conforme estabelece o artigo 2.º da CRA, pelas razões diversas - o Estado democrático é profundamente descentralizador e desconcentrado, respeitador das autonomias locais e outras de índole corporativa.

Outrossim, o Estado Democrático vela pelas garantias individuais contra os abusos do poder, fornece mais instrumentos jurídicos de protecção, destacando-se, além do intervencionismo económico, a acção cultural e social do Estado, a defesa do ambiente, da natureza, da qualidade de vida, entre outras vantagens.

Tudo isso depende da consciência do homem, do capital humano, do político, da existência de instituições fortes, de uma gestão responsável da coisa pública, do comportamento ético e de uma nova consciência dos líderes, isto é, de verdadeiros lideres que actuam nos vários sectores da vida pública e privada.
Se nada for feito nesse sentido, as Autarquias Locais em nada contribuirão, continuará em Angola a imperar a arrogância, a falta de integridade, a existência de uma classe de intelectuais que pensa para si e não para o futuro e para o bem-estar dos cidadãos.

Almeja-se por mudanças nas políticas concretizáveis e inclusivas para atenuar as assimetrias, novo posicionamento dos grupos de interesses, a contribuição de todos os stakeholders, isto é, maior espaço para a participação de todos os intervenientes na melhoria das condições sociais e económicas das classes mais vulneráveis.

Precisamos de um poder local autárquico liderado por indivíduos comprometidos com o povo, compliance e accountability, cientes do seu dever e preparados para fazer acontecer as inovações, criando um ambiente onde o cidadão não pode ter medo de buscar apoio nas administrações públicas.

Em suma, o sucesso, o crescimento e o desenvolvimento de Angola não dependem unicamente das AL, pois não constituem elas a causa da miséria do povo angolano.
Devem, sim, ser repensadas as nossas políticas ou medidas e que devem ser tomadas dentro de um sistema, com a mobilização da sociedade para os desafios da Nação e das respectivas circunscrições territoriais. Os académicos vão-se envolvendo com as suas ideias, norteados por um pensamento honesto e comprometidos apenas com a justa causa pública.

Nada é novo, os programas de governação contemplam tudo. Basta a ousadia, dando oportunidade a todos, valorizando o papel de cada angolano em democracia e na construção do Estado-Nação.

*Docente na Faculdade de Direito da Universidade Agostinho Neto