Temos visto já algumas - as habituais - vozes de mau agouro lançarem farpas sobre a proposta agora em discussão na Assembleia Nacional. Desta vez, pelo menos os deputados de todas as bancadas votaram-na favoravelmente na generalidade, passando a mensagem de que as matérias de segurança nacional não são património de um partido apenas; mas de toda a Nação que eles no conjunto representam. Seguindo "essa bala" do bom exemplo dos deputados, mais que um terçar de argumentos contraditórios com o meu dilectíssimo amigo e "contendor" Dr. Maurílio Luiele - a quem neste primeiro "trumunu de ideias" do ano endereço as mais calorosas saudações e os melhores votos em 2024 - vou dar "uns bitaites" em jeito de contribuição para uma discussão parlamentar que desejo o mais ampla e rica possível.
Sou daqueles que defendem que as matérias da segurança nacional devem ser compreendidas e estruturadas "para além da mera defesa das instituições do Poder do Estado", seguindo o paradigma da escola americana. Por outras palavras e em linguagem simples, a segurança nacional não tem apenas a ver com a preservação das instituições que garantem o Poder do Estado como a Presidência da República e governantes, ou os deputados e magistrados públicos e judiciais, ou a integridade das fronteiras terrestres, marítimas e aéreas. Ou mesmo a defesa da integridade dos cidadãos, o seu património e interesses. Isso é naturalmente importante, porque, sem isso, o Estado perde a sua razão de ser que é, antes de mais garantir a segurança e protecção das pessoas, património e interesses dos seus cidadãos e outros a ele ligados. Para a minha felicidade, o parágrafo inicial da proposta de lei não podia ser mais revelador: "O Estado angolano garante a segurança nacional mediante a salvaguarda da independência nacional, integridade territorial, soberania nacional, da defesa dos direitos, liberdades e garantias fundamentais, enquanto condições que proporcionam a realização plena do homem, sendo o centro e destinatário principal da presente Lei para a legalidade democrática instituída".
Neste entendimento, a segurança nacional, e alinhado com as últimas correntes nessa matéria, vai mais além: ela deve assentar antes de mais no compromisso de todos os cidadãos, em assegurar que todos, sem excepção, usufruam o gozo pleno dos Direitos Humanos que ganharam em razão da sua cidadania. Direitos da primeira linha; Alimentação, Vestuário, Segurança e Habitação; da segunda linha; Educação, Saúde e Assistência Social; e da terceira linha; Participação, Cultura, Justiça, Trabalho, Lazer, Desenvolvimento e outros ligados ao usufruto pleno da Cidadania, no contexto de um Estado Democrático de Direito.
Nesta visão, muda um pouco a ênfase dos actores da segurança nacional, tal como vem na proposta de lei: ao invés da abordagem clássica como está na lei actual em que os principais responsáveis pela segurança nacional são os funcionários públicos contratados e treinados para o efeito - os militares, polícias e membros da comunidade de inteligência - a responsabilidade primária recairia em todos os cidadãos. Sem desprimor daqueles. Porque o asseguramento da segurança de todos, e dos interesses nacionais seria uma obrigação e um exercício de Cidadania. Não "bufaria", como temos a tendência de considerar. É isso que espelha o segundo parágrafo que diz "a realidade actual demonstra que os desafios para a segurança nacional são transversais e requer uma maior inserção do cidadão, melhor articulação e coordenação dos sectores, instituições, órgãos e serviços do sistema de segurança nacional, no sentido de se garantir a estabilidade e o desenvolvimento económico-social sustentável contra quaisquer ameaças e riscos".
Uma outra mudança decorrente dessa abordagem - que é amplamente praticada nos países ditos mais avançados democraticamente - tem a ver com as próprias matérias objectos da definição de segurança nacional. Não apenas as questões militares, policiais e de inteligência, conforme vem implicado na lei, como mais dois aspectos: Os económicos e sociais e os agora chamados património imaterial.
A segurança alimentar (as pessoas têm que ter no mínimo as três refeições de qualidade por dia), a segurança sanitária (têm que viver no ambiente saudável que previna as doenças e, se doentes, assistência médica adequada), a capacidade de produzir e estocar os bens e serviços essenciais à vida dos cidadãos, etc., são factores que podem afectar profundamente a segurança nacional, caso não funcionem adequadamente. Por essa razão, a criação e gestão criteriosa e prudente de reservas de alimentos, medicamentos, vestuário, combustíveis, outros bens de primeira necessidade, etc., devem fazer parte do leque de matérias objecto de uma lei de segurança nacional. A pandemia da Covid-19 mostrou ao mundo como apenas as reservas cambiais não chegam para garantir a segurança das populações que não têm stocks. Quando todas as lojas fecham, o dinheiro perde totalmente o valor.
É nessa senda que os danos à Economia em grande escala deviam ser tipificados como atentado à segurança nacional. O mesmo à degradação dolosa do meio ambiente, ao Sistema Nacional de Saúde, ao ecossistema de produção de bens essenciais, Recursos Minerais e Marinhos e outros que prejudiquem gravemente as populações. O que nos leva a outra mudança de abordagem: o ecossistema de segurança nacional, para além das tradicionais instituições ligadas à Defesa e Segurança, incluiria também os Departamentos Ministeriais responsáveis pelos bens e serviços estratégicos como mencionado acima e, aos militares, polícias e operativos de inteligência acrescer-se-iam os funcionários que trabalham nessas instituições.
Desengane-se quem pensa que isso daria num Estado securitário habitado por bófias: em países como os Estados Unidos, Reino Unido e outros ditos avançados democraticamente é assim. É ao Poder Judicial que cabe então regular esse exercício e assegurar que os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos não sejam beliscadas - já agora, um quesito que precisa ser melhorado nesta proposta de lei, em meu entender.
Finalmente - os factores imateriais como matéria de segurança nacional. Um tema muito caro à Filosofia da Política contemporânea. Ao contrário do que acontecia num passado recente, aspectos como a Identidade, Motivação, Resiliência Social ou um ambiente conducivo à Felicidade e Bem-Estar comuns, vão se constituindo em aspectos essenciais para a segurança nacional dos Estados-Nação. Com importância suficiente para serem protegidos e regulados por lei. Até porque, já o são na Constituição da maioria dos países, incluindo Angola. O que faz sentido; na "arte" da guerra hodierna, em que o "psychological warfare" (guerra psicológica) atingiram níveis de sofisticação nunca vistos, avisados são os países que procuram se precaver de ataques massivos à moral, motivação, felicidade e bem-estar dos seus cidadãos (cidadão triste e desmotivado não trabalha, não constroi, não se mobiliza e não mobiliza; não gera desenvolvimento nem para si, nem para os outros). E aí entra o virtual: a INTERNET e redes sociais como veículos de comunicação e os esforços até agora inglórios dos Estados para os controlar e evitar que causem danos a esse Património Imaterial. No nosso caso, vale o terrível e angustiado aviso à navegação de D. José Imbamba, Arcebispo de Saurimo e Presidente da CEAST: estamos numa crise de ética tal que corremos o risco de "normalizar" a fome e miséria da maioria da população. Terrível porque menciona um dos pilares em que assenta a segurança nacional do nosso País. É que a Fome não humaniza; animaliza...
Voltemos ao controlo das redes sociais. Apenas dizer que a luta para controlar os grandes danos que o mau uso das redes sociais causam às sociedades, ainda está longe de chegar ao fim. Até porque a velocidade do desenvolvimento das novas tecnologias de informação e comunicação é muito superior àquela para as controlar. Voltando à Filosofia, parece que o Homem criou uma tecnologia que está a escapar do seu controlo. A única maneira de fazê-lo parece ser apelar à (boa) consciência das pessoas... num contexto que os próprios valores morais vão se desmoronando por influência das próprias tais TICs. AÍ, só me resta desejar boa sorte aos dignos deputados, neste quesito que se me afigura quase impossível. Entretanto, a ameaça à segurança nacional que o mau uso das RS constitui, está aí e deve ser equacionado.
Em resumo, há ainda trabalho a fazer nesta proposta de lei, é verdade, mas na essência ela está muto bem elaborada. É uma excelente notícia que os deputados perceberam que se trata de uma matéria muito complexa que diz respeito a todos e por isso deve ser encarada de forma transpartidária. Essa compreensão - que saúdo vivamente - é, para mim, o melhor presente que os deputados oferecem à Nação na discussão da proposta de Lei. E como "... é bom que os irmãos vivam em união", só nos resta invocar para eles a sabedoria divina nas deliberações que farão para o bem de toda a Nação.
*Comunicólogo e membro do Comité Central do MPLA