Em 14 de Novembro de 2023, o Grupo de Trabalho sobre Detenções Arbitrárias do Conselho de Direitos Humanos emitiu a Opinião n.º 63/2023, determinando que o Estado angolano violou disposições fundamentais do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos e da Declaração Universal dos Direitos Humanos. O parecer recomendou a libertação imediata do detido, a anulação do processo judicial e o ressarcimento pelos danos sofridos.
Mais de um ano depois, Angola permanece em incumprimento. São Vicente continua privado da liberdade, num processo que as Nações Unidas qualificaram como carente de provas, viciado por irregularidades e conduzido à margem das garantias fundamentais. O silêncio do Estado, diante de uma decisão emanada do próprio órgão de que agora faz parte, revela uma contradição profunda entre a retórica diplomática e a realidade jurídica interna.
Em 13 de Outubro de 2025, foi feita uma Comunicação ao Relator Especial das Nações Unidas sobre a independência dos juízes e dos advogados, e ao Relator Especial das Nações Unidas sobre Tortura e outros tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes, após iniciar o sexto ano de detenção na prisão de Viana (Província de Luanda), em 22 de Setembro de 2025.

O paradoxo de uma eleição sob sombra
A presença de Angola no Conselho de Direitos Humanos deveria ser motivo de orgulho nacional - uma oportunidade de afirmação moral e política. Mas quando um país se senta entre os guardiões da dignidade humana enquanto mantém um cidadão detido contra o direito internacional, a conquista converte-se em paradoxo e em farsa.
O caso São Vicente tornou-se um teste de coerência moral. O mesmo Estado que, em Genebra, promete defender a legalidade e a justiça, em Luanda viola as suas próprias obrigações constitucionais e internacionais. Essa dissonância debilita a credibilidade de Angola e expõe o carácter ambíguo do sistema multilateral, que tantas vezes privilegia o poder diplomático em detrimento da integridade dos princípios.
A eleição ao Conselho mostra a força da diplomacia angolana - mas também o limite do seu discurso. O País soube projectar-se como parceiro estratégico da África Austral, activo na SADC e na União Africana, capaz de construir consensos regionais. Contudo, a política externa não pode ser um espelho que disfarça as fissuras internas.
A não execução da recomendação da ONU não é um detalhe burocrático; é um gesto político. Transmite a mensagem de que, para Angola, as convenções internacionais são opcionais. Tal posição compromete a confiança de parceiros multilaterais e enfraquece a legitimidade com que o país se apresenta como defensor dos direitos humanos e do Estado de direito.

O preço do silêncio
Internamente, o caso São Vicente alimenta uma percepção crescente de justiça selectiva e instrumentalização política do sistema judicial. A repressão de vozes dissidentes e o prolongamento arbitrário de detenções corroem o tecido da legalidade e enfraquecem o contrato moral entre o Estado e os cidadãos.
Num país onde a história recente foi marcada por sacrifício e resistência, a justiça deveria ser o espaço sagrado da independência e da imparcialidade. Quando a justiça se converte em espectáculo e punição, deixa de servir a verdade - e passa a servir o poder.

O caminho da coerência
Cumprir a recomendação da ONU e libertar Carlos de São Vicente não seria um acto de fraqueza, mas de coragem institucional e grandeza moral. Seria reconhecer que errar é humano, mas que persistir na injustiça é uma crueldade política. Angola teria a oportunidade de provar que é capaz de alinhar o seu discurso internacional com a prática doméstica, demonstrando maturidade, autocrítica e respeito pelo direito.
Mais do que reparar um erro, esse gesto abriria uma nova página na relação entre o Estado e a justiça. Seria um sinal de que o País não teme a transparência nem o escrutínio, mas que os acolhe como ferramentas de crescimento democrático.
A sombra de São Vicente paira sobre a eleição de Angola ao Conselho de Direitos Humanos. É um lembrete de que nenhuma vitória diplomática apaga as feridas da injustiça.
Se Angola deseja ser respeitada em Genebra, deve começar por respeitar o que a sua própria Constituição consagra: o direito à liberdade, à legalidade, à dignidade humana, à propriedade privada e à livre iniciativa.

A verdadeira legitimidade internacional nasce do respeito interno pela justiça. Só quando as sombras forem enfrentadas com verdade é que a luz das vitórias poderá brilhar sem incoerências.